COMARCA DA CAPITAL

PRIMEIRA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE

 

 

Processo nº 2002.710.000350-0

AÇÃO CIVIL NÃO ESPECIFICADA

A: MINISTÉRIO PÚBLICO

R: MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO

 

 

SENTENÇA

 

O Ministério Público visa com esta ação a condenação do Município do Rio de Janeiro em obrigação de fazer consistente no oferecimento, em sua rede, de serviço de saúde especializado, em regime de internação com o mínimo de 16 leitos, para desintoxicação e/ou tratamento de criança e adolescentes dependentes de entorpecentes ou drogas afins, bem como a manutenção, nas unidades públicas de saúde de cada área programática da cidade, de serviço especializado, em regime ambulatorial, para atendimento, tratamento e acompanhamento daquela clientela, dotando em ambos os casos os referidos serviços de equipamentos e profissionais capacitados.

Liminarmente requer que o réu disponibilize, no prazo de trinta dias, um mínimo de dez leitos em unidade hospitalar do Município (5 para meninos e 5 para meninas), em setor separado do destinado a pacientes psiquiátricos, para internação daquela clientela, ou que arque com os custos das internações de crianças e adolescentes em estabelecimentos particulares. Também requer a antecipação da tutela quanto ao atendimento ambulatorial especializado, de crianças e adolescentes dependentes, dando-se o prazo de dez dias para cumprimento.

Anexa inquérito civil datado de 1999, segundo o qual a oferta de serviços de saúde, de natureza pública, para crianças e adolescentes usuários de drogas, álcool e outras substâncias que causem dependência é insuficiente para o caso dos menores que querem o tratamento e inexistente para os que não querem se tratar.

O tratamento gratuito é oferecido apenas em regime ambulatorial por quatro entidades (nenhuma da esfera municipal), as quais não se fazem presentes em todas as áreas da cidade. Não há tal serviço na Zona Oeste, por exemplo, área que possui maior extensão territorial do Município. Por outro lado, não existe nenhum local para internação gratuita de crianças e adolescentes dependentes.

Acrescenta que o tratamento de criança ou adolescente para a proteção de sua saúde deve ser compulsório, independente da sua vontade, o que exige, portanto, ainda que excepcionalmente, o serviço de internação. Este se adequaria igualmente em casos de crianças e adolescentes em situação de rua que precisassem se tratar.

Sobre o pedido liminar o Município se manifestou às fls. 138-141. Alega ser descabido o pedido, especialmente a título liminar, eis que não se sabe quantos nem quem são os menores nas condições da petição inicial, pois existem diversos estabelecimentos que oferecem os tipos de tratamento requerido, além do Hospital Nise da Silveira. Não haveria norma legal ou constitucional que obrigue o Município a construir centro de tratamento nos moldes imaginados pelo Ministério Público, sendo as normas referidas na inicial de caráter programático, sob a égide do mérito administrativo, não se admitindo a intervenção do Ministério Público ou do Judiciário. Por sua vez, a internação desse tipo de paciente não tem se revelado medida eficiente, não sendo preconizada pela Organização Mundial de Saúde. O Município estaria trabalhando para implantar um Centro de Atenção Diária (CAD), nos moldes de um CAPS específico para crianças e adolescentes usuários de drogas no bairro do Encantado, o que ocorreria em três meses. Em trinta dias poderia oferecer unidade ambulatorial por área de planejamento, para o atendimento de crianças e adolescentes, bem como uma enfermaria pediátrica com equipe devidamente treinada no Hospital Raphael de Paula Souza em Curicica.

Pedido liminar deferido às fls. 157 verso.

Às fls. 157, ofício da E. 13ª Câmara Cível solicitando informações para instrução de agravo interposto pelo Município. O efeito suspensivo foi indeferido. Resposta às fls. 158-159.

Cópia da petição do recurso às fls. 160-168. Às fls. 170, ofício informando a reconsideração da decisão anterior no sentido do deferimento do efeito suspensivo ao agravo.

Contestação do Município ás fls. 180-184, alegando a nulidade do mandado citatório, que prevê o prazo de cinco dias para resposta; a falta do interesse de agir, em razão de o Município já estar implantando serviços que resultariam no atendimento ao pedido do autor e, no mérito, a impossibilidade prática de atendimento ao pedido no prazo determinado. Alega ainda a impossibilidade do Judiciário intervir na discricionariedade inerente ao Poder Executivo Municipal.

Réplica do Ministério Público às fls. 195-202.

Informação prestada pela Secretaria Municipal de Saúde ás fls. 209-210.

Às fls. 212, ofício da E. 13ª Câmara Cível, informando nova decisão reconsiderando em parte o efeito suspensivo atribuído ao agravo para tão somente dilatar o prazo do cumprimento da decisão agravada, para sessenta dias.

Audiência realizada em 12/11/2002 (fl. 217), onde o Ministério Público solicitou o prazo de 10 dias para analisar a proposta do Município visando a celebração de termo de ajuste de conduta.

A pedido do Ministério Público, às fls. 219 foi fixada multa diária pelo descumprimento da decisão liminar, no valor de cinco salários mínimos.

Manifestação do Ministério Público às fls. 224-238, reiterando seus argumentos anteriores e informando que a assinatura do TAC não foi possível por desinteresse do réu. Anexa minuta do termo discutido administrativamente entre as partes (fls. 239-243). Anexa relatórios referentes à adolescente Erica, vítima da omissão do réu.

Às fls. 293-301, relatório do Instituto de Criminalística Carlos Éboli sobre os efeitos de substâncias químicas comumente utilizadas como inalantes.

Às fls. 303, comunicação de novo agravo interposto pelo Município, cuja cópia veio a ser juntada às fls. 308-315, contra a decisão que fixou multa diária pelo descumprimento da decisão liminar. Informações prestadas às fls. 318.

O primeiro agravo de instrumento foi provido em parte (apenso), mantendo-se a dilatação do prazo para cumprimento da decisão agravada.

Manifestação final do Município às fls. 321-325, reiterando a necessidade de um prazo maior para atendimento dos pedidos.

Relatados, passo a decidir.

Relativamente à argüição de nulidade da citação, entendo que o vício apontado se cuida de mera irregularidade, que não teve o condão de causar ao réu prejuízo, eis que apresentou robusta contestação no qüinquagésimo dia após a juntada do mandado de fl.155.

É juridicamente possível o pedido para que o Poder Judiciário determine o cumprimento de obrigação de fazer pela Administração Pública, ainda que importe alocação de recursos.

A 2ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça deste Estado já a reconheceu tal possibilidade por ocasião em que condenou o Estado do Rio de Janeiro a criar e fazer funcionar berçários e leitos em hospitais da Zona Oeste deste Município. Naquela ocasião, somente modificou em parte a sentença condenatória, dilatando o prazo estabelecido, para propiciar o cumprimento do julgado de acordo com as formalidades legais que envolvem as finanças públicas (Apelação Cível n.º 99.001.05017, 2.ª Câm. Cível do TJRJ, Rel. Des. Maria Raimunda T. de Azevedo, julgamento em 06/07/1999, unânime):

 

Apelação da sentença que condenou o ESTADO DO RIO DE JANEIRO a instalar berçários e leitos nos hospitais da Zona Oeste do Município do Rio de Janeiro e recrutar pessoal habilitado a fazer funcionar, no prazo de 15 (quinze) dias, em Medida Cautelar proposta pelo Ministério Público. Reforma parcial da sentença para adequar a condenação às normas legais de forma a propiciar o cumprimento do julgado.

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Relativamente à violação do princípio da independência dos poderes é de lembrar que aqui não se trata de invasão da esfera de discricionariedade , mas da legalidade do ato omissivo, que pode ser apreciado pelo Judiciário.

(……)

A doutrina de freios e contrapesos levam, em certos casos, o Judiciário a assegurar o cumprimento dos preceitos constitucionais, através de institutos, que o próprio Estado criou, e dotou determinados entes de titularidade, para que assim se efetive o comando constitucional.

 

No caso em tela, o Ministério Público indicou concretamente a situação lesiva causada pelo Município. Ilustram a omissão do réu os casos de Daniele (fl. 84) e de Erica (fls. 253-260), que tiveram seu direito à saúde desrespeitado pela falta do serviço ora pretendido.

Este último ainda salienta o caminho natural daqueles adolescentes que necessitam da internação e não a encontra nesta Comarca: são encaminhados para clínicas nas comarcas de Barra Mansa e de Campos, conveniadas da Fundação para a Infância e Adolescência. O tratamento sob internação, já dificultado pelo estágio de comprometimento do jovem paciente, tem sua eficácia ainda mais limitada em razão da distância que se estabelece dos familiares.

Em depoimento no inquérito civil, a Sub-gerente de Programas de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde afirma que

não existe uma previsão da SMS para a implantação de serviços ambulatoriais em toda a cidade, nas áreas programáticas, existindo, apenas, o desejo que isto ocorra; … não existe na rede pública municipal tratamento para estes casos em regime de internação; que em casos de emergência, os pacientes podem ser encaminhados para internação no CPP II; … que a internação é sempre pontual, excepcional, nos casos mais graves, quando está delirando, agressivo, colocando em risco a sua própria vida e a de outras pessoas; que a desintoxicação é uma indicação para internação (fl. 99)

Neste depoimento e nos ofícios de fls. 92-93 e 102-103 o réu reconhece a demanda por tais serviços e a deficiência dos atuais prestados.

O réu não faz prova da alegada implantação de serviço ambulatorial especializado. A rigor, projetos existem desde 1999, ano em que foi instaurado o procedimento administrativo no âmbito do Ministério Público. Meras intenções não são capazes de afastar o interesse processual da demanda. Ainda assim, não há projeto concreto para o atendimento em todas as áreas programáticas da comarca, nem qualquer iniciativa para o atendimento sob regime de internação.

A juventude está doente. Seu vírus mais letal, as drogas, fomenta o vício e a violência e não sofre qualquer combate por parte do réu, apesar de notórios seus superávits orçamentários bilionários, reconhecidamente canalizados para arrojadas empreitadas urbanísticas, em clara violação à prioridade imposta pelo artigo 4º e seu parágrafo único da Lei Federal 8.069/90 e pelo artigo 227 da Constituição Federal.

O que dizer daquelas crianças em situação de rua, marginalizadas pelo inconsciente coletivo da sociedade e em grande parte comprometida com drogas inalantes e ilícitas? Esta é a infância mais necessitada e para a qual o tratamento é imperioso, pois visa o resgate de sua saúde e de sua própria dignidade. A demanda do Ministério Público visa o correto.

A alegação do réu de prazo exíguo não se justifica, considerando que o procedimento administrativo por parte do Ministério Público é datado de 1999.

Pelo que, JULGO PROCEDENTE o pedido para

a)     tornar definitiva a decisão liminar, com o prazo modificado pela E. 13ª Câmara Cível, no sentido da manutenção pelo réu, nas unidades públicas de saúde de cada área programática da cidade, de serviço especializado, em regime ambulatorial, para atendimento, tratamento e acompanhamento de crianças e adolescentes usuários de drogas, dotando-as de equipamentos e profissionais capacitados;

b)     condenar o réu para que disponibilize, no prazo de 90 dias e em substituição ao item 1 do pedido liminar, serviço de saúde especializado em regime de internação, com o mínimo de 16 leitos, para desintoxicação e/ou tratamento de crianças e adolescentes dependentes de entorpecentes ou drogas afins, dotando o referido serviço de equipamentos e profissionais capacitados.

Condeno o réu, ainda, nas custas e em honorários de 20% sobre o valor da causa em favor do Centro de Estudos Jurídicos da Procuradoria Geral da Justiça do estado do Rio de Janeiro.

Dê-se ampla publicidade, inclusive através da Assessoria de Imprensa do Tribunal de Justiça.

Registre-se e intimem-se.

Rio de Janeiro, 1º de setembro de 2003.

 

 

 

LEONARDO DE CASTRO GOMES

Juiz de Direito