João Batista Damasceno: Lendas de um juiz

As práticas do desembargador Siro Darlan são um ponto no horizonte a nos guiar para a solidariedade e a justiça

O Dia

Rio – Uma adolescente sugeriu à mãe que tatuassem um coração em cada uma, demonstrando amor recíproco. Coisa rara, na idade em que costumam querer se distanciar dos pais. Calorosa, a mãe acolheu o pedido e foram ao tatuador, onde ouviram que “portaria do juiz Siro Darlan” proibia tatuagem em criança ou adolescente, mesmo com autorização dos pais. Outros tatuadores repetiram a estória. Um deles narrou processo que sofrera por tal prática. A mãe indagou-me sobre a existência da norma e lhe disse que há quase uma década tal juiz fora promovido a desembargador e que não teria poderes constitucionais para tal restrição. Mas telefonei para ele, e a resposta foi a mesma: não editara tal portaria e não poderia fazê-lo.

O desembargador Siro Darlan aproveitou para me contar sobre quando chegou a um cinema e um grupo de adolescentes revoltados reclamava por não poder entrar, ainda que o filme estivesse classificado para as suas idades. O gerente colocara na porta aviso de que menores de 18 anos não poderiam ingressar no cinema desacompanhados dos pais, “por ordem do juiz Siro Darlan”. Custou a convencer o gerente do cinema de que era o próprio, que jamais editara tal proibição, que há alguns anos era desembargador e que não teria poderes para instituir tal restrição.

São muitas as ocorrências folclóricas sobre o desembargador. Uma estudante narrou que sofria ao ouvir seu nome, pois a mãe, diante de qualquer rebeldia, dizia que iria levá-la ao juiz. Outra mulher, vendo-me acompanhado do desembargador numa reunião com movimentos sociais, se aproximou com uma criança no colo e disse-me ser “menina do Siro”. Explicou que fora moradora de rua e, acolhida pelo então juiz da Infância e Juventude, teve oportunidade de fazer-se, estabelecer laços sociais e constituir família.

Ninguém que tenha exposição pública está isento dos mitos que se constituem sobre si. Mas os criados em torno do eterno juiz da Infância e Juventude Siro Darlan são emblemáticos. Não sem razão. Na época na qual a única política de proteção à população de rua eram o recolhimento e a internação, ele instituiu programa de assistência. E, com cartolina e uma máquina fotográfica instantânea, emitia ‘identidades’ para moradores de rua, que passavam a ostentar o único documento que lhes indicava nome, filiação, impressão digital e a imagem. Há muito a ser feito no Brasil pelos excluídos, e as práticas do desembargador Siro Darlan são um ponto no horizonte a nos guiar para a solidariedade e a justiça.

João Batista Damasceno doutor em Ciência Política pela UFF e juiz de Direito