Dedicado à amiga, juíza Patrícia Accioli

Estou sentado sobre um jazigo.
Diante de mim, há outro.
Dentro dele está o olhar mais doce.
Sinceros olhos azuis que tanto diziam
De amor, de carinho
E de verdade gentil

Ali, desde hoje,
Passa a ser o marco de uma coragem insuspeitada
(apenas para os que se iludiam com a candura radiante),
Que, se sempre serviu para fazer necessária justiça,
Na labuta incansável a que se entregava esse corpo santo,
Não funcionou como escudo que o protegesse da covardia.

Para matá-lo, legiões de vermes
Tiveram que se associar.
Como ainda assim lhes faltasse estatura par a atingir
Aquele espírito
Precisaram contar com a conivência estúpida
Dos que deveriam protegê-lo.

Esses, ocupados em construir castelos,
Quando não fortuna própria,
Já haviam selado o seu destino.
Guardar o precioso é tarefa incompreensível
Para quem desconhece valor
Que não se possa levar preso à algibeira.

Como pano de fundo, neste instante,
Se apresenta o pôr-do-sol.
Silencioso e tranquilo como só ele sabe ser
E o momento pede.
Junto conosco, agora, nada além da escuridão
Que começa a nos envolver.
Todos se foram.
Para onde irei?

Não quero partir,
Nem que ela se vá.
Não estou mais aqui
Mas, em algum lugar há trinta anos,
Numa sala de aula em que somos
Outra vez meninos.
A brincar de aprender as teorias
Que libertam, no discurso,
E destróem vidas e nossa fé, na prática.

Ela, já foi.
Afin al, há pressa no momento.
Porque não se pode querer mais nada
E a esperança acabou.
Só ficando esse oco em minha cabeça,
Vácuo provocado pelo deslocamento súbito
Do que vai pela mente sem rumo.

Estamos assim próximos:
Lado a lado,
Cada qual em seu lugar distante.
Um estender o braço me permite tocar
A parede de cimento fresco
Que de hoje em diante,
Dia a dia mais dura,
Como a alma do que fico,
Conterá, mais que um erro,
Todo significado do momento
Perplexamente vivido por um povo
Que perdeu qualquer referencial ético.

Na memória,
Repete-se a cena de um filme:
“Os Intocáveis”.
Quando, ali pelo início da película,
Na Chicago dos anos 30,
Eliott Ness contava com nada mais do que um punhado de homens.
Feita a primeira prisão de quem finalmente poderia
Incriminar o todo-poderoso Al Capone,
Um grupo de mocinhos desce com a te stemunha-chave
Num elevador onde, em cena seguinte,
São encontrados todos assassinados.
Nas paredes, escrito em garranchos,
Com o sangue dos que caíram,
Uma só eloquente palavra:
“TOCÁVEIS”

Vi as fotos da execução fria de minha amiga.
Pensei no último olhar doce, sem pânico e corajoso,
Com que deve ter encarado seus algozes.
Terá passado por sua cabeça
Que a traição de que se tornava vítima
Não era apenas a perpetrada por quem espremia o gatilho?
A sentença de morte de Patrícia Lourival Accioli fora assinada bem antes,
Dentro das paredes do impotente Poder a que pertencia.
Onde não falta luxo, nem mármore
E sobra uma cegueira coveniente, voluntária,
Naqueles que deveriam cuidar dos que se empenham,
Como o fazia Patrícia,
No cumprimento de um dever sagrado.

Por isso, a partir de amanhã
Sempre quando passar em frente ao Fórum do Rio de Jane iro,
Verei escrito, em letras garrafais,
Por todas as paredes daqueles edifícios suntuosos,
Como o sangue ainda fresco de minha amiga,
A palavra que, de fato e literalmente, foi gravada a fogo
Na cara do cretino Estado Brasileiro:
“TOCÁVEIS”

Caminharei em frente,
deixando para trás aquelas fachadas imoralmente cobertas de manchas e
vergonha,
Junto com o calar pusilânime que ali pronto se fará.
Da mesma forma como, em breve,
Sairei deste lugar em que sigo, atônito,
A contemplar um túmulo,
Que me lembra um doce olhar e um sorriso.

Seguirei pelas ruas do Rio,
como o farei pela vida.
Patrícia não seguirá mais nada, nem fará coisa nenhuma.
Em mim, levo, desde já, um luto trincado
Pela força das mandíbulas
Que rangem meus dentes,
Numa raiva burra, bruta e sem medo.

Pelos últimos anos
Tentamos, eu e minha agora inerte companheira,
Marcar um simples encontro.
Não foi possível, até hoje,
Quando enfim nos encontramos frente a frente.
Eu, mirando o abismo do absurdo que nos separa.
Ela, uma eternidade.
Nos meus sonhos dou-lhe um abraço
E o último beijo antes da despedida.
Não choro mais.
Sequei por dentro e por fora.
A noite me faz bem,
Ainda que a impotência me consuma.
Vem a mim a sensação de que Deus aqui se encontra
E que ele me ouve quando peço por minha irmã,
Timidamente.
Sei que devo partir também.
Não com ela, por enquanto.
Não ainda.

É quando chegam, em meio à penumbra,
Duas pessoas amigas de longa data.
Uma delas raio de luz, que brilha intensamente
Na constelação do que conheço por bom,
Desde os tempos que estudávamos todos juntos na faculdade.
Ouço seus soluços discretos.
Enquanto lembro de quando todos aqui
Tínhamos um futuro
E percebo que não há amanhã possível.
Porque não há paz.

Sentados ficamos por bom tempo,
Num convívio harmonioso entre mais e menos mortos.
Vêm recordaçōes e até sorrisos.
A certa altura,
Um braço movido a carinho me diz:
É hora de levantar.
Fazemos menção de sair juntos,
Em meio à calma vizinhança que nos cerca,
Mas, um de nós deve ficar
E não há o que possa ser feito,
Senão um atabalhoado gesto de adeus.
Surge uma clareza branca a iluminar meu rosto
E penso em quantas vezes ainda ouvirei
O poeta a cantar em meu ouvido
Palavras persas com sabor a Minas.
Aproveita o dia de hoje,
Porque não sabes o que te reserva o amanhã.
E testemunho, tal como uma profecia que se converte em realidade,
O luar nascer em vão.

Arlindo Daibert
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