A “solução do problema da criminalidade”
Toda discussão sobre leis penais conta sempre com ao menos um dos participantes usando o clichê “Ah! Mas ‘isso’ (qualquer que seja a medida proposta) não resolve o problema da criminalidade!”.

Ouço essas palavras, ao mesmo tempo em que me pergunto: e o que será que resolveria “o problema da criminalidade”? Qual a bala de prata? Qual a equação? Onde andará essa panacéia, que todos parecem saber existir, mas ninguém informa o que seja ou dá uma pista de onde encontrá-la?

Realmente, nada mais certo do que se usar aquele lugar-comum em qualquer debate a respeito de penas, leis e combate a ações ilícitas. Mas, o acerto da afirmação, ao contrário do que seu conteúdo parece sugerir, decorre da mera constatação de que inexiste “uma soluçâo para o problema da criminalidade”.

Desde que Caim matou Abel o homem delinque aos olhos de Deus e de seus semelhantes, com maior ou menor gravidade. Do homicídio ao furto de galinhas se pratica de um tudo em termos de ilícito. O crime é algo inerente à condiçāo humana. O problema está no castigo.

Vai daí que a busca deve ser por soluções para criminalidades – desse jeito, no plural – porque há uma infinidade delas a desafiar que concebamos tantas alternativas quantas sejam necessárias ao enfrentamento da realidade penal. Ou seja, não existe um problema, uniforme ou identificável isoladamente, de criminalidade, para que devamos contemplar o futuro, com nossos olhos tradicionalmente sebastianistas, a espera de uma varinha de condão legal que o resolva.

Por mais paradoxal que seja, creio que a estrada longa e sinuosa rumo à mudança de que tanto carecemos merece ser iniciada pela própria mentalidade de nossos juízes (e juscriminalistas em geral), a quem muitas vezes falta a compreensão de que todo crime, por menor que seja a expressão econômica do bem atingido, merece ser punido (leia-se reprovado – e vamos discutir daqui a pouco o possível papel ressocializador da pena, principalmente da restritiva de liberdade).

Então se deve mandar para a prisão aquele que rouba um pacote de biscoito porque tem fome? Creio hoje seja consenso entre praticamente todos aqueles que possuem mais de meio neurônio uma resposta peremptoriamente negativa a essa pergunta. Contudo, é inadmissível que o ladrão (sim, esse o nome de quem pega o que não lhe pertence, seja o que for e o motivo que se alegue para a conduta) saia sem nem ao menos receber um pito da Justiça. E é exatamente isso o que nossa jurisprudência deixa acontecer quando institui o tal “princípio da insignificância”, aplicado atualmente aos assim chamados “crimes de bagatela”.Como diz um antigo professor, isso não é princípio; é o fim!

Serviços à comunidade (na impossibilidade das manjadas cestas básicas) ou mesmo uma sentença condenatória pro forma, seguida de perdão judicial. Qualquer coisa que tenha em mente o baixo impacto do delito, de um lado, mas, de outro, que não perca de vista que este ainda assim continua a ser um delito e merece a reprovação social, na medida certa, um papel que cabe ao juiz desempenhar em nome de todos. Pensar diferente é manter o país na rota de permanente colisão da bastardia ėtica com a falta de vergonha na cara.

Li outro dia uma entrevista feita com o juiz nova-iorquino que condenou a 150 anos de prisão o golpista-milionário Bernard Madoff. A matéria comentava ainda um pedido do advogado de Madoff para que o magistrado reduzisse o tempo de prisão para 15 anos, já que, decorrido esse prazo, a expectativa de vida de seu cliente seria muito baixa e “não era humano” impedir que seus últimos dias na Terra devessem ser passados na reclusão.

O magistrado revelou que em nenhum momento hesitou ao rejeitar aquele pleito para manter o século e meio a que antes chegara. E disse o que me pareceu seja o que menos pensam os nossos julgadores locais quando decidem, em particular crimes: mais do que aplicar a lei, sua sentença era uma mensagem para a sociedade, no sentido de que um ato como o de Madoff merecia uma punição (isso mesmo, essa foi exatamente a palavra usada pelo entrevistado) exemplar, capaz de ser lida por delinquentes ou cumpridores da lei, no sentido de que esta vale mesmo, para todos, e é dura.

Quando falo dessas coisas, sempre me ocorre uma situação por que passei naquele país e que me ensinou muito a respeito do que significa respeito à lei. Como era minha primeira viagem para os EUA, feita apenas aos 38 anos (fui para um mestrado), tudo o que dispunha, além de um inglês sofrível e uma vontade danada de aprender o que pudesse, eram os estereótipos a respeito da cultura estadunidense, com destaque para andar muito na linha, se não… Imaginava os americanos como um povo naturalmente dado ao respeito das normas legais. A verdade, no entanto, se mostrou emblematicamente no primeiro dia em que precisei dirigir. Com os inúmeros conselhos de “vê lá, hein?” a me assombrar, ficava obcecado em localizar cada placa sinalizadora, sobretudo as que mostravam limites de velocidade. A cena era ridícula: eu, a “tartarugar” a 55 mph; os locais a enfiar o pé no acelerador de seus carrões. Aquilo foi como descobrir que Papai Noel nāo existia. Por pouco tempo. Mantendo-me na prudência just in case, dali a pouco vejo surgir do nada o trenó e as renas: um carro de polícia descaractizado se transformou subitamente em árvore de Natal e perseguiu um Porshe que passara como um foguete. Logo mais à frente vejo o dono do veículo parado e o carro (talvez junto com o próprio motorista) sendo apreendido. Fatos como esses se repetiram várias vezes, com enredos os mais diferentes.

E foi simples entender o seguinte: americano também descumpre a lei. A diferença é que se for pego, as penas sāo severas e, o que é a nota principal, completamente – ou,como ali se fala, em toda a sua extensão – aplicadas. Sem essa de “jeitinho”, de “coitadinho”, de “veja bem”, de “social”. Errou, paga.

E se vai para a cadeia algemado (às vezes com correntes que prendem até as pernas, que não raro estão atadas às que seguram os braços), sim, embora jamais alii tenha visto aquele espetáculo medieval, muito comum em nossas paragens, do prisioneiro ser socado na traseira de um camburão ou ter a sua face agarrada por um policial para fazê-lo encarar as lentes das câmeras de tv. E só se sai de trás das grades com o pagamento de fiança, em casos excepcionais, assim mesmo deixando valores astronômicos.

Bateau Mouche, Pimenta Neves, Salvador Cacciola, Nicolau dos Santos Neto, Edmundo, mensaleiros em geral, sangue-sugas e outros parasitas confessadamente autores de delitos ou simplesmente nāo vāo para a cadeia ou, quando isso acontece, tudo se faz para que algum instituto facilitador seja aplicado, como se a liberdade do criminoso fosse um direito inerente ao seu status e nāo um dever do Estado impor a sua perda. Cada processo criminal de rico se transforma num duelo de habeas corpus; enquanto os de pobre caem no limbo do inferno.

O juiz Marcelo Semer, no espetacular artigo postado antes neste blog, merece todos os elogios pelo escrito e apenas um reparo, quando afirma que não cabe aos juízes combater o crime, mas, apenas julgar os casos em que se discute a sua prática. Discordo. O magistrado é peça fundamental na luta contra o crime e Patrícia era um exemplo clássico de como isso deve ser feito: ia às casas das vítimas, questionava autos de “resistência”, discutia laudos necrológicos com peritos no próprio IML, enfim, era o que um julgador criminal deve ser: um pesquisador da verdade.

Foi esse o motivo por que a mataram. Ao contrário do tribunal a que pertencia – e que hoje a trata como uma pária, quando ontem a abandonou à própria sorte -, Patrícia não se limitava a atuar protocolarmente, a apenas receber e despachar papéis que lhe fossem encaminhados. Agia para ser parte da solução e não do problema. Ao mesmo tempo que mandava para a cadeia todos os criminosos, era implacável com o abuso de autoridade e práticas contrárias aos direitos humanos.

Por outro lado, é incrível que, a pretexto de se proteger inocentes, a legislação penal seja uma colcha de retalhos que sempre se presta a encobrir quem a descumpre. Não se pode adiar nem mais um dia a abolição da escravatura a que juízes devem se submeter em face de um ordenamento jurídico que só falta premiar os seus infratores. Principalmente em matéria de execução das penas, é um escárnio público que condenados a 30 anos de reclusão possam ter seu regime fechado convertido para semi-aberto após cumprirem a – essa sim – bagatela de um sexto desse tempo.

Conflita ainda com essa benevolência da lei e dos próprios juízes o sistema carcerário primitivo em que são atirados nossos detentos. Ressocialização? Ora, tenham a santa paciência! Ir para um presídio no Brasil é sinônimo de pena de morte, de seviciamento e de uma vida sub-humana. Nada denuncia com mais clareza a barbárie e a esquizofrenia de nosso sistema Jekyll and Hyde do que a permanência desse estado de coisas, reforçado pela ira insana da opinião pública. E se a necessidade de ser totalmente reformulado o aparelho prisional brasileiro é um imperativo, nem por isso se deve perder de vista o caráter punitivo, sim, que a pena deve possuir. A pena por si própria – bem entendido -, não as condiçōes em que se dá seu cumprimento. Nada serviria melhor ao propósito de recivilizar, mais do que ressocializar, o condenado; ao mesmo tempo que passaria a todos a mensagem de firmeza da lei e do propósito de que está imbuído o sistema voltado a aplicá-la, imprescindível nos dias atuais.

Estamos num país que necessita urgentemente recalibrar seus valores, em especial naquilo que nos leva a tolerar o intolerável, a buscar justificativas para o injustificável. Numa sociedade refém do crime, em todas as suas formas e níveis, com justos a pagar por pecadores, instituições capturadas por interesses escusos e autoridades a se encolher, sob o domínio do medo.

Arlindo Daibert