‘O estado falhou. Há uma ameaça à democracia’, afirma juíza
Kenarik Boujikian Felippe, da 16ª Vara Criminal de SP, é contra medidas de exceção, como juízes sem rosto, para proteção de magistrados ameaçados. ‘Se quiserem matar, vão matar’, afirma
Domingo, 20 de Agosto de 2011, 11h53
Paulo Liebert/AE
A juíza Kenarik Boujikian Felippe fala sobre o assassinato da magistrada Patrícia Acioli
Pablo Pereira
O estado brasileiro falhou ao não prover segurança para a juíza Patrícia Acioli, assassinada no Rio em suposta ação do crime organizado, e esse fato coloca em risco a democracia no país. A opinião é da juíza Kenarik Boujikian Felippe, da 16ª Vara Criminal de São Paulo. Habituada a julgar crimes como tortura, homicídios e outros delitos contra a pessoa, ela critica a falta de atendimento do pedido de segurança feito pela colega do Rio, morta no dia 11 com 21 tiros quando chegava em casa, em Niterói, Rio de Janeiro.
Para Kenarik (pronuncia-se Kãnarik), não é admissível que juízes não tenham segurança do Estado e sejam assassinados. “Se os juízes não conseguem ter tranquilidade para sentenciar, a população terá ainda menos tranquilidade”, afirmou. “O que há é uma ameaça ao sistema democrático”, afirma. Ela conta que em 22 anos de trabalho, nunca foi ameaçada. Mas diz que conhece colegas que tiveram de viver com escoltas. ” Houve uma juíza que teve dois casos”, lembra a magistrada. Ex-presidente da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), que ajudou a fundar em São Paulo, Kenarik já atuou em casos rumorosos, como a condenação de policiais militares acusados de tortura e de processos envolvendo denúncias contra policiais “por crime de extorsão”, no caso do roubo do Banespa. “Foi o maior roubo a banco do país”, lembra ela. “O caso do Banco Central, no Ceará, foi um caso de furto”, emenda.
De acordo com a juíza, a solução está no efetivo atendimento das garantias de segurança do estado para casos de juízes ameaçados. “Sou contra medidas de exceção, como juíz sem rosto, julgamentos colegiados ou transferência de processos”, afirmou. ” Se quiserem matar, vão matar”, declarou. Leia a íntegra da entrevista.
Como a senhora está acompanhando o caso do assassinato da juíza Patrícia Acioli, no Rio?
Kenarik Boujikian Felippe– O caso é muito emblemático. Expõe a fragilidade dos juízes que estão à frente de algumas causas. Mas o mais preocupante, que é a notícia que vem, é que ela tinha pedido segurança e não tinha sido atendida. Essa é a questão mais preocupante. Nesse momento, o importante é que se faça a investigação necessária para saber exatamente a origem do crime. E, independente dessa origem, o fundamental é sermos colocados de frente com essa situação de vulnerabilidade. Não é admissível isso. Se os juízes não conseguem ter tranquilidade para sentenciar, a população menos ainda terá. O grave é não ter sido dado nenhum suporte, que era necessário, segundo o quadro que está sendo apontado. E isso não é exclusivo do Brasil. Na América Latina, vários países estão sofrendo o mesmo problema. Recentemente houve um encontro de juízes na Argentina, onde tivemos relatos de juízes da Colômbia, com assassinatos, também no Peru. Tudo para vulnerar a democracia.
O Estado brasileiro falhou?
Sim. A partir do momento em que se tem notícias de ameaças, o direito à vida tem de ser preservado. Com o que for possível. No caso, era com a segurança. Então, o estado falhou.
Essa segurança oferecida aos operadores do direito funciona? E por quanto tempo é necessária a segurança?
Não é possível fixar um tempo. Depende de cada caso. Eu, em 22 anos de carreira, nunca tive um caso de ameaça. Tive processos, que, em tese, poderiam ter soffrido. Porque envolvia uma parcela da população na qual se poderia imaginar que isso pudesse acontecer.
A senhora já atuou em processos envolvendo crime organizado e até policiais.
Sim. Já tive processos aqui na Vara com vários policiais. Um número grande de policiais que foram acusados do crime de tortura. Outro processo: o do roubo do Banespa, o maior roubo a banco no Brasil. Aquele do Banco Central, no Ceará, foi crime de furto. O do Banespa foi o maior roubo a banco. (caso ocorrido em junho de 1999, quando uma quadrilha roubou R$ 39 mihões da agência central do Banespa em São Paulo). Dizem que estaria ligado ao PCC, houve advogado que faleceu durante o processo. Teve policial que respondeu processo por extorsão.
Mas a senhora não foi ameaçada?
Nunca. Não tive esse problema. Conheço juízes que solicitaram e que tiveram escolta aqui em São Paulo. Houve uma juíza que teve dois casos. Num deles, imagina-se que foi em razão de julgamento. Ela pediu segurança, ficou por um tempo, mas depois entendeu que tudo estava solucionado.
Temos aí, nesse ambiente, uma agressão à democracia?
Sim. A Justiça fica vulnerável nessa situação. E o que está em jogo é a democracia. Exercer a jurisdição não é um deleite. É um exercício de poder do estado. A partir do momento em que o agente responsável pelo exercício desse poder não pode fazê-lo, por falta de segurança, podemos afirmar que a democracia está sendo vulnerada. É claro que a vida está sendo atacada; existem outros valores. Mas, em termos institucionais, não é só a questão daquele juiz que está sofrendo ameaça. É preciso ter um sistema de garantias, de bom funcionamento da Justiça. E esse bom funcionamento supõe que tenha o juiz vivo para fazê-lo.Temos um número significativo de juízes sendo ameaçados, 100 juízes.
Qual é a solução?
A solução é o juiz continuar a julgar, é o trabalho dele. E se houver casos de ameaças à vida dele, que o Estado trate de dar garantias. É difícil haver outra solução. Algumas vezes apontam outras saída, como os juízes sem rosto, da Colômbia, não me parece correto. Sempre existem essas discussões. Mas isso fere o sistema de garantias do sistema. Ou seja, esse fato de haver o crime contra a juíza do Rio, ou de haver vários ameaçados, não pode levar o sistema a soluções mágicas. Por que são soluções que ferem também o princípio da democracia. O acusado tem direito de saber por quem está sendo julgado. Até para saber se o julgador, no mínimo, é um inimigo dele.
E os julgamentos colegiados?
Julgamento colegiado não vai resolver. O colegiado também pode sofrer ameaças. O deslocamento de processos, como já foi feito aqui, na época do assassinato do doutor Machado (Antonio José Machado Dias, corregedor dos presídios de Presidente Prudente, assassinado em 2003), quando mandaram vários processos para São Paulo, também não funciona. Isso não tem efeito nenhum. Se quiserem matar, vão matar. Seja em São Paulo, seja em Presidente Prudente. Não podemos tomar atitudes que não tenham efetividade ou que vulnerem o sistema. Nem mesmo o debate sobre aumento de penas para casos de matar juízes. Não tem sentido. Já há a previsão de recursos na lei. O julgador pode fixar penas além dos mínimos. Veja: não há necessidade de mudanças legislativas e nem de medidas de exceção, como juízes sem rosto. Eu sou contra. Não se deve tomar medidas emergenciais, durante comoção. É preciso ter racionalidade. Não há outra alternativa se não dar segurança para aquele que está precisando. Mas não para todos, indiscriminadamente.
Depois das notícias de hoje, dando conta que as balas que mataram a Juíza Patrícia Acioli são oriundas de lotes destinados a PMERJ, tenha convicção da necessidade de retorno da Guarda Judiciária.
MENSAGEM ENCAMINHADA AO SÍTIO DO SINJUSTIÇA EM 19-08-2011
Os acontecimentos que envolveram a morte da juíza Patrícia Acioli devem ser utilizados como ponto de partida para várias reflexões. O que quero destacar é a necessidade de retorno da Guarda Judiciária. O fato em questão demonstra a fragilidade do Judiciário em conceder uma segurança de qualidade aos seus membros. O TJ/RJ depende da troca de favores com Executivo: 10(dez) PMs aqui, duas Casas de Custódia ali, estande de tiro acolá, enfim utiliza-se o Fundo Especial para construir estruturas para Executivo e nenhuma solução estável e definitiva para a segurança dos membros do Poder Judiciário.
A Guarda Judiciária foi extinta sem razão e seus treinados e especializados integrantes encaminhados aos cartórios judiciais para trabalharem com processos ou para setores administrativos desempenhar funções distintas daquelas para quais fizeram concurso. Com uma demanda enorme de segurança o TJ/RJ se dá ao luxo de dispor da sua eficiente Guarda Judiciária.
O Fundo Especial deveria ser usado, entre outras coisas, para propiciar o retorno da Guarda Judiciária, bem como para aparelhar e para treinar esse órgão de segurança, evitando que o TJ/RJ fique a mercê da disponibilidade de PMs para garantir a segurança dos seus magistrados. É uma vergonha! Um poder que quer se construir autônomo depender de outro numa questão básica. Não deveríamos discutir se eram suficientes 1, 2, 3 ou 4 PMs para evitar a morte da juíza, ou se tem que aumentar o efetivo de PMs para segurança de magistrados. A discussão é mais profunda. Será que a presença da PM não gera uma insegurança? Não quero com essa indagação cair no discurso superficial de que ninguém presta ou que todos são ruins, mas acho que não só a questão de segurança estaria mais consolidada, mas a questão de confiabilidade seria notória. Faz diferença ter pessoas do próprio quadro e que compartilham sempre a mesma realidade profissional.
Temos inúmeras demandas em relação ao TJ/RJ, entre elas a situação vergonhosa em que estão colocados os(as) aposentados(as) e o momento se mostra propício para acrescer as nossas demandas a discussão sobre a Guarda Judiciária, que teoricamente não afeta a questão dos 6% da LRF, eis que tais servidores estão trabalhando e, logicamente, estão incluídos na DTP(Despesa Total com Pessoal), mas, infelizmente, não estão utilizando o treinamento especializado que receberam.
Tentativa de resgate de presos em Fóruns(salvo engano Ilha), fuga de preso(com certeza em Nova Iguaçu) ameaças aos servidores do TJ/RJ e agora o assassinato brutal da ex-serventuária e Juíza Patrícia Acioli são exemplos do quadro de insegurança em que o Poder Judiciário está colocado.
A garantia da autonomia e da independência do Poder Judiciário passa também por construir estruturas de segurança autônomas e independentes que garantam a tranquilidade e a segurança dos servidores do TJ/RJ no desempenho de suas atribuições.
Pelo retorno e ampliação da Guarda Judiciária.
Um grande abraço a todos.
Wagner Cordeiro
Publiquei este post no meu blog e fiz uma menção ao excelente texto do ilustre desembargador Siro Darlan: Caros amigos, na semana retrasada, como foi amplamente veiculado, ocorreu o assassinato da juíza Patrícia Acioli, em Niterói, Rio de Janeiro, tive a chance de conhecê-la pessoalmente e fiz meu primeiro Tribunal do Juri com ela, tendo como ex-adverso o Dr. Matheus, atuante promotor público. A ilustre magistrada era titular da 4ª Vara Criminal da Comarca de São Gonçalo – RJ. Está vara era responsável pelos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida que são de competência do Tribunal do Juri. A magistrada dentre outros, combatia os crimes ligados as mílicias e máfias que existem em São Gonçalo, estas associações tem em sua composição a presença de muitos policiais civis e militares, além de bombeiros e outros agentes públicos da segurança. Condená-los passou a ser a sentença de morte da magistrada. Mas o pior é saber que os seus pares, que agora se mostram indignados nada, ou muito pouco, fizeram para tentar evitar a tragédia anunciada. É triste ver que agora existe um jogo de empurra passa a fazer parte da questão, pois ninguém quer assumir que houve uma falha na segurança da juíza.
Não sei se sabem, mas um ex-presidente do TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), que hoje está presidindo um outro tribunal, tem uma verdadeira legião de batedores e seguranças, compostas ppor muitos carros, motos e policiais. O ilustre magistrado chega ao ponto de fechar ruas, avenidas, rodovias e até mesmo a Ponte Rio-Niterói, para passar. Além disso, possui segurança de agentes públicos 24 horas em sua residência. Não me recordo de ter ouvido falar em nenhuma ameaça a este magistrado. Ou seria majestade? Não me lembro também de ter visto nenhum veículo de comunicação fazer qualquer menção a este fato, até porque o pricipal veículo de comunicação do país é assistido pelo escritório da família do ilustre magistrado.
A única voz que tratou com a veemência necessária o grave fato foi a do ilustre desembargador Siro Darlan, que, em um texto brilhante ( http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2011/08/15/do-insulto-a-injuria/ ), faz a seguinte afirmação: “Fica, assim, solucionado o crime: Patrícia cometeu suicídio. Foi atingida por si mesma, 21 vezes, vítima de sua caneta perdida, que se encontrava a desperdiçar tempo mandando para a cadeia milicianos e todo tipo de escória que cresce à sombra do Estado, de sua corrupção e de sua inoperância”. Perfeito! considerando as palavras do atual e do ex-presidente do TJRJ, nada é mais explicativo: por, supostamente, não ter requerido a escolta esta não foi dada, então foi suicídio. Mas todos sabiam do risco que a magistrada corria, aliás, quase todos, pois os responsáveis maiores pelo tribunal não sabiam.
Mas, embora não pareça, tudo pode ser pior, até a explicação pela falta da segurança, pois a família afirma e documentos comprovam que a magistrada enviou vários comunicados de ameaças pedindo providências quanto aos fatos. Ora se isso não é um pedido de segurança, o que seria então? Acho que o grande problema é que o legalismo, virou uma prática nos nossos tribunais, contudo, só é utilizado quando tende a ser favorável a uns poucos. A melhor interpretação é favorável às “melhores” pessoas. Além de tudo, cabe ressaltar que a postura do próprio governador do estado, que disse que poria todo o efetivo policial necessário para cuidar das investigações e que ele mesmo iria se empenhar em buscar a solução do crime, mas em nenhum momento disse que iria apurar o porque da magistrada não contar com escolta policial. Será que existem mais coisas entre o Executivo e o Judiciário do que pode supor a nossa vã filosofia? Acredito que sim e que são coisas podres, muito podres.
Espero que tudo seja realmente apurado, tudo mesmo, inclusive a responsabilidade dos mandatários do poder judiciário do estado do Rio de Janeiro, que foram omissos, negligentes, incompetentes dentre outros adjetivos. Mas o pior é que as medidas, muitas vezes paliativas, vão se mostrar eficazes até que um novo fato aconteça, pois mexer no cerne da questão é mais complicado e requer uma mudança muito mais brusca, mudança esta que não agrada a muita gente, ou melhor, não agrada a poucos que “se julgam” muito.