Kenarik Boujikian: Toque de recolher, juventude ou gado?
por Kenarik Boujikian Felippe
Projeto de lei apresentado em agosto de 2011, na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, quer tratar os adolescentes como gado, que se leva ao pasto e depois recolhe, mas com jovem, tem que ser diferente.
O projeto de lei, que fere todos os princípios que norteiam as normas vigentes, estabelece que será vedado aos menores de 18 anos desacompanhados de mãe, pai ou responsável, no período das 23h30 (vinte e três horas e trinta minutos) às 5h (cinco horas): transitar ou permanecer nas ruas; entrar ou permanecer em: restaurantes, bares, padarias, lanchonetes, cafés ou afins; boates, danceterias ou afins; lan houses, casas de fliperama ou afins; locais de freqüência coletiva.
Prevê a criação de equipes, que compostas por policiais civis ou militares, além de conselheiros tutelares, farão ronda, com a finalidade protetiva de recolher os menores de 18 (dezoito) anos que estiverem em situação de risco, que estejam expostos a qualquer tipo de: ilicitude; comportamento impróprio para sua faixa etária; insalubridade; situação degradante. Exemplifica situações de risco como as que envolvem as seguintes práticas: consumo de bebida alcoólica, cigarro ou qualquer outra droga, por menor de 18 (dezoito) anos; prostituição; audição de som em alto volume, propagado por veículos particulares ou estabelecimentos comerciais; condução de veículo automotor, por menores de 18 anos.
Em algumas cidades, de diversos estados, já existe lei municipal (inconstitucional), que têm a mesma formatação.
O tratamento que se pretende dar à juventude é a mesmo dispensado àqueles que cometeram crimes e foram condenados.
O direito fundamental de ir e vir está previsto na constituição federal e o estatuto jurídico do preso é exceção à regra, nos termos da própria constituição.
Assim, a Lei de Execução Penal prevê que podem ser impostas ao condenado no livramento condicional, como condição, recolher-se à habitação em hora fixada (artigo 132, parágrafo 2º); para o condenado que cumprirá a pena em regime aberto o juiz estabelece a condição de sair para o trabalho e retornar nos horários fixados (artigo 115, II); nas saídas temporárias, o juiz fixa a condição de recolhimento à residência visitada, no período noturno (artigo 124, II).
A limitação espacial, num estado democrático, é medida da maior gravidade.
A regra é o gozo do direito fundamental de ir e vir. Exceção constitucional ao direito de locomoção é a vigência do estado de sítio, quando será possível determinar a obrigação de permanência em localidade estabelecida, lembrando que esta medida exige a intervenção do Presidente, Conselho da República e Congresso Nacional, dada às suas conseqüências nefastas. Só pode ser decretada em razão da ineficiência do estado de defesa, comoção grave ou declaração de estado de guerra, e, ainda, deve ser por tempo determinado.
Nas cidades onde existe o “toque de recolher”, os jovens foram alçados à condição de condenados ou inimigos do estado.
Tratar a juventude, pela circunstância de serem crianças ou adolescentes, como condenados, é desrespeitar a natureza de humano das pessoas e não ver as crianças e os adolescentes como sujeitos de direito.
Alguns Tribunais já enfrentaram a matéria e foi declarada a inconstitucionalidade da norma municipal. Neste sentido, a decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, de junho de 2011, na ADIN 2010.014498-7, referente à lei municipal de Tubarão, relatada pelo desembargador Lédio Rosa de Andrade, que traz lição de Rosinei Paes Anselmo:
“Em pleno século XXI, deparamo-nos com práticas que remontam ao período medieval e ditatorial nas questões relacionadas ao direito da criança e do adolescente.
Questão que comprova essa situação é o toque de recolher – proibição de circulação de crianças e adolescentes nas ruas no período noturno, adotado em algumas cidades do país, por meio de lei municipal ou por portaria de juízes da infância e juventude.
A medida é um retrocesso que retoma o pensamento da idade média e do “período de chumbo”, segundo o qual os direitos e garantias individuais eram ignorados, notadamente no que diz respeito à criança e ao adolescente”.
O mesmo órgão já decidira, em março, em caráter liminar, a inconstitucionalidade da lei do “toque de proteger”, da cidade de Guaramirim, no processo 2010.060882-1, cujo relator foi o desembargador Eládio Torret Rocha, que apontou que “instituir toque de proteger (ou de recolher) tolhe o direito de ir, vir e ficar das crianças e dos adolescentes, implicando em negativa das suas qualidades de sujeitos de direito e, conseguintemente, em violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ele afirma:
“A clausura tem o efeito de lhe prejudicar o sadio desenvolvimento, eis que o priva da convivência com seus pares, cujas experiências, boas ou más, revelam-se imprescindíveis para a sua plena formação humana como indivíduo adulto. O sacrifício da liberdade física não condiz, ademais, com um Estado Constitucional e Democrático de Direito, o qual assenta-se sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e a supremacia dos direitos fundamentais. Muito ao contrário. Evidencia-se, nessa prática, instituto típico dos estados autoritários e policialescos, destinado à segregação dos estratos sociais pauperizados e, por isto mesmo, marginalizados, consubstanciando-se, pois, verdadeira limpeza social.
A salvaguarda de nossos jovens não perpassa o manietamento de seus direitos fundamentais, mas a atuação pontual e efetiva da família, da sociedade e do Estado – aqui compreendido em seus entes tripartites: União, Estados-membros e Municípios – em exigir e cumprir as suas atribuições, competências e responsabilidades sociais, econômicas e jurídicas em tema de infância e juventude”.
Não duvido que a medida tenha respaldo de parcela da sociedade, de pais que priorizam o mais cômodo, que abdicam das suas relações e responsabilidades, preferem não ver o irracional que nela esta contida, na medida que estas normas são originárias do perverso sentimento do medo, que segundo Lenine e Julieta Venegas:
“O medo é uma linha que separa o mundo
O medo é uma casa aonde ninguém vai
O medo é como um laço que se aperta em nós
O medo é uma força que não me deixa andar”.
Preocupante saber que o “toque de recolher” foi idealizado em algumas cidades, por portaria do Poder Judiciário.
Mas alguns tribunais já decidiram pelo afastamento destas portarias e o Conselho Nacional de Justiça, em decisão de março de 2010, no processo 0002351-58.2009.2.00.0000 (200910000023514), promovido pelo Ministério Público de Minas Gerais, relator Ministro Jorge Hélio Chaves de Oliveira, apontou que a portaria atenta contra qualquer sorte de razoabilidade, reduz o princípio da legalidade e extrapola os limites delineados pelo ECA e os excessos praticados pelo magistrado, usurpando, inclusive, competência privativa da União para legislar sobre direito civil, penal, comercial processual (artigo 22 da CF/88), as determinações de caráter geral estabelecidas pela Portaria ainda ofendem os artigos 5º, II; 227, §§3º e 4º e 229, todos da Carta Constitucional, além do artigo 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Não podemos deixar de enxergar os malefícios que causam para a construção de uma República, que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º da CF), constituindo um de seus objetivos a promoção do bem estar de todos sem preconceito de idade e outras formas de discriminação (art. 3º, inciso IV da CF).
Se mantidas as normas e portarias estaremos a cercear o desenvolvimento natural de praticamente toda a infância e adolescência, dos jovens brasileiros, vitimizando-os, pois o estado colocará na conta da juventude, punindo-os, pela sua incapacidade de realizar políticas públicas de segurança, eficazes.
O que esperar de pessoas que não puderam ter um desenvolvimento sadio e seguro?
A medida está na lógica do estado policial. Suas raízes se fundam na relação de controle, que não está e nem pode estar ao alcance das relações humanas. A base para relações sadias deve ser a relação de confiança para que seja possível ter crianças e jovens efetivamente protegidas.
Interessante saber que encontramos no pensamento de muitos jovens, os fundamentos das decisões referidas. Colho como fonte, recente trabalho realizado na Escola Móbile, em São Paulo, por jovens do 9º ano, que não são atingidos por estas restrições, e que exercitaram a escrita de carta argumentativa sobre o tema. Destaco algumas passagens, que dizem mais do que qualquer coisa:
“Os adolescentes devem aprender a lidar com ela (liberdade) e com as responsabilidades que traz. Ao invés de criar uma lei que restrinja a liberdade dos adolescentes, seria infinitamente mais benéfico para a sociedade criar leis que ensinem o jovem a utilizar essa liberdade sem infringir a liberdade alheia. Além disso, é preciso constatar que se o adolescente não sabe ser livre, o futuro adulto também não saberá” (texto 2).
“A lei por Vossa Excelência implantada pode não ser a melhor maneira de evitar que os jovens se droguem, bebam ou deixem de estudar… Proibir os adolescentes de sair de casa após às 23h00 significa tirar deles …importante momento de socialização.
“Proibir os jovens de sair durante a noite não os impede de beber ou se drogar” (texto 3).
“Como somos todos obrigados a seguir os artigos da Constituição, creio que o toque pode ser considerado ilegal…para diminuir a quantidade de jovens envolvidos com drogas, prostituição e álcool, devem ser feitas campanhas para alertar os pais e estes não devem ser punidos pelos atos dos filhos.
Há sim aqueles que se envolvem com álcool, drogas e até mesmo prostituição, porém, há também os que não se utilizam destas drogas. É desvantagem para os segundos terem como punição o mesmo que os primeiros…o dever de cuidar dos adolescentes ser de seus próprios pais, e não do governo, sendo eles os responsáveis por dizer aos filhos quando devem voltar para dormir para não atrapalhar os estudos” ( texto 4).
“Todos estão em perigo quando se encontram nas ruas, problema esse de segurança pública, a qual deve ser urgentemente melhorada. Entretanto, apesar de a norma implantada objetivar a proteção do jovem, acaba intervindo em sua liberdade e agredindo o artigo 5º da Constituição….o jovem está pagando com sua liberdade pelos problemas de segurança. Além disso…penaliza a todos.
O governo não é responsável pelo controle do jovem, mas sim pela segurança oferecida a ele” (texto 5).
“Creio que o senhor saiba que não permitir a circulação dos jovens depois de certo horário desrespeita o artigo 5º da Constituição, que determina o “direito de ir e vir”.
Mas será que a lei está cumprindo totalmente seu objetivo ou está apenas sacrificando parte da liberdade dos jovens?….sabemos que o diálogo é algo muito importante durante a adolescência… O diálogo entre os jovens e os pais também é limitado pelo toque: as famílias acabam não discutindo sobre quais são as “partes boas” e as “partes ruins” de ficar sozinho à noite na rua, os males que as drogas podem fazer, entre outros assuntos… Entendo que sua intenção era proteger os jovens, por isso, sugiro que seja investido dinheiro em educação (para os adolescentes entenderem os males das drogas, por exemplo) e em rondas policiais noturnas… e dar mais segurança aos jovens que saem à noite sem más intenções” (texto 6).
“Tenho noção dos limites que existem para um Juiz… Essa (portaria) criada por Vossa Excelência é genérica, tendo efeito de lei, por atingir qualquer jovem de minha região. Como repito e o senhor sabe, não cabe a um Juiz criar uma lei, isso podendo ser considerado um crime contra as normas do país…O direito de ir e vir cabe tanto para adultos quanto para adolescentes” (texto 7).
“Esta lei pretende tirar a função educacional dos pais, alegando que estes não têm “controle” sobre seus filhos. Certo ou errado, é direito e obrigação dos pais avaliar o que é melhor para seus filhos e prepará-los para a vida.
Aliás, esta medida não é exatamente inovadora, pois a primeira via que os ditadores fazem… é decretar um toque de recolher… com a desculpa de estar “protegendo” o povo. Certamente sua intenção não é a mesma, mas o precedente é perigoso…esta regra precisa ser revogada. São necessárias outras medidas para “acolher” o povo” ( texto 10).
“A Constituição brasileira diz que é livre a locomoção no território nacional em tempos de paz. Nós estamos em tempos de paz, contudo a livre locomoção para os jovens foi restringida. Essa lei é, portanto, inconstitucional…argumento usado é que essa lei coloca horários para os adolescentes dormirem para que possam ter um bom rendimento escolar…não é certo que o jovem irá para a cama depois do toque…o horário de volta e o rendimento escolar é algo a ser discutido com os pais, não sendo necessária a intervenção do estado. Isso apenas enfraquece as relações familiares…o toque de recolher é uma medida que deve ser revogada. Deve-se pensar na liberdade do ser humano” (texto 11).
“Não são todos os adolescentes que se envolvem com delitos, drogas e brigas. Então, essa lei é injusta com os jovens que querem sair até tarde apenas para ir ao cinema, a restaurantes, shoppings, etc.
Também é uma questão de confiança entre pais e filhos: limitar brutalmente a liberdade dos adolescentes não é a solução para acabar com o envolvimento de menores de idade com drogas ou roubos. Os jovens devem aprender a serem responsáveis por conta própria, com suas próprias experiências, e não pela imposição dos pais ou do governo” (texto 12)
Não podemos seguir o caminho de criminalização da juventude. Sabemos quem serão os mais atingidos. Temos uma gigantesca normativa de proteção de direitos humanos, seja no âmbito internacional e nacional (especialmente a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e Adolescente). Já não passou da hora do Estado cumprir as suas obrigações com suas crianças e adolescentes?
Liberdade é o componente necessário para que os seres humanos desfrutem da condição humana. Se queremos jovens que assumam a vida deste país não podemos deixar de vê-los, como são: sujeitos de direitos, dotados de todos os direitos e fundamentais e não objeto de intervenção do estado.
Não podemos esconder problemas, temos que resolvê-los.
Kenarik Boujikian Felippe, juíza de direito da 16ª Vara Criminal de SP, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para Democracia.
O que ou quem é a fonte de controle ou de interferência sobre a conduta de seu filho? A sociedade, o direito, a família, o Estado, ele mesmo, enfim…?
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
A Folha de Boa Vista no dia 27.01.2011 estampou como matéria de capa: “Integrantes de galeras voltam a aterrorizar o bairro Sílvio Leite”. O conteúdo da reportagem, em síntese, retratava briga de adolescentes, integrantes de “galeras” rivais, durante a noite, com a utilização de arma de fogo, o que deixou os moradores do bairro aterrorizados.
Coincidentemente, dois dias antes, em artigo publicado nessa mesma coluna, propomos uma reflexão sobre as principais causas da delinqüência juvenil em nossa cidade, algumas sugestões para sua redução e comentários sobre a tentativa de seu controle mediante ação estatal de limitação do horário para os jovens estarem nas ruas.
Esse tema representou justamente a inquietação dos acadêmicos de direito de uma universidade local, quando do início de suas aulas. Os alunos queriam saber se os adolescentes ao retornarem da última sessão do cinema para suas casas poderiam ser “detidos” nos pontos de ônibus? E como ficaria a garotada que costuma se reunir em lanches ou praças próximos de suas residências para conversar, namorar, andar de bicicleta, jogar bola, tomar sorvete ou assistir um show, principalmente nos finais de semana?
Problematizaram situações mais complexas. Discutiram a conduta a ser adotada pelo policial ao se defrontar com jovem, que, pela injustiça social, tem como sua moradia e de sua família a rua, ou mesmo, com a situação do menor-abandonado. Abordaram também a situação de jovens que trabalham e/ou estudam à noite.
Nos debates, o que mais despertou nos alunos foi um sentimento de injustiça. Isso ocorreu, porque a liberdade é fundamento da moral e do direito. É um atributo da pessoa humana. Existe no interior da pessoa, não pode ser suprimida e nem controlada por outros.
A liberdade foi identificada pelos filósofos estóicos, na Grécia Antiga, como um direito natural e difundida nas civilizações ocidentais pelo cristianismo. A noção de liberdade ganhou maiores contornos com Kant, nos princípios da era Moderna, quando a considerou uma pré-condição da ordem normativa, e, em seguida, com La Déclaration dês Droits de l’Homme et du Citoyen (1895), passando a ser vista em quase todas as Constituições, juntamente com a igualdade.
Após a Segunda Grande Guerra, como o direito à vida não se restringiu mais a uma exigência biológica, passando a ser pensado como direito a uma vida plena, ampliou-se a dimensão do direito à liberdade. Este passou a percorrer a órbita do maior direito, o direito à vida. A liberdade constituiu-se no núcleo dos direitos fundamentais.
Assim, a visão contemporânea do direito à vida, não está apenas em nascer e viver, mas viver em plenitude, importando na efetivação de outros direitos básicos como a própria liberdade, saúde, educação, alimentação, segurança, justiça, esporte, cultura, profissionalização, convivência familiar e comunitária, lazer e etc.
Não pretendemos sustentar a liberdade absoluta para os jovens ou para qualquer outra pessoa. Defendemos a liberdade com responsabilidade, uma vez que essa última resulta da existência do homem em sociedade e não por ser livre. Portanto, aos adolescentes que cometerem atos infracionais, em qualquer horário do dia, devem, após o procedimento apuratório de sua responsabilidade, sofrer a sanção legal adequada, com a finalidade de se evitar a reincidência e formar sua cidadania.
O que não concordamos é com a taxação generalizada de periculosidade sobre os nossos jovens, a fim de legitimar ações estatais limitadoras dos direitos fundamentais, como, por exemplo, a fixação por portaria judicial de horário para aqueles estarem nas ruas da cidade. Essa ferramenta, na prática, lançou na vala comum todos os adolescentes de Boa Vista antes que seus comportamentos violassem norma penal incriminadora. Atingiu diretamente seus pensamentos.
A periculosidade lançada sobre todos os adolescentes nada mais é do que uma prognose. Relaciona-se a provável prática de um fato delituoso quando estiverem nas ruas, especialmente depois das 23h30min.
Seguidores dessa corrente escondem, atrás do discurso da prevenção de ação futura, uma ideologia de natureza patrimonialista e, sobretudo, preconceituosa, para punir o jovem pelo o que ele é e não pelo que fez. Essa posição estende o campo de incidência da reprovabilidade penal fixada na Constituição, na relação do sujeito com o fato punível para alcançar uma situação íntima do adolescente – o seu modo de ser. Entra em pauta a própria relação entre o ser e o dever-ser, base estruturante do Direito.
Pela portaria, a sanção se apresenta de forma disfarçada. Ela não prevê diretamente a aplicação de uma medida sócioeducativa. Nem poderia, porém ao assegurar, pelo braço forte do Estado – a polícia, a apreensão do adolescente e sua condução à delegacia, com posterior entrega aos seus pais ou responsável, como conseqüência de seu descumprimento, produziu indiretamente uma sanção.
Está claro que os órgãos repressivos do Estado foram chamados a intervir não como conseqüência da prática de um crime ou contravenção, mas pelo modo do adolescente ser assim ou assado. Nesse caso os critérios de legalidade estrita deixaram de ser operacionais.
Chico Buarque com muita propriedade adverte em uma de suas músicas, que: “Se vives nas sombras, freqüentas porões. Se tramas assaltos ou revoluções. A lei te procura amanhã de manhã. Com seu faro de doberman.”
Não pensem que os adolescentes são desinformados, que desconhecem seus direitos. Eles sabem que o Poder Público não pode vigiá-los e puni-los por somente estarem nas ruas, pois tais ações cabem aos seus pais, verdadeiros titulares do poder familiar. Normas que fixam horários de estar nas ruas têm sua fonte no seio da entidade familiar. Ao Estado não compete interferir nesse campo privado, salvo na hipótese de estado de sítio. A ação do Estado é, via de regra, a de proteção às famílias.
Portanto, nossa intenção, quando resolvemos produzir uma série de comentários sobre questões ligadas a infância e a juventude para a Folha de Boa Vista, foi definida com maestria pelo amigo Afonso Rodrigues em seu artigo “Criticar ou comentar”, do dia 29/30.01.2011.
Isso mesmo Afonso, a idéia do primeiro artigo era propiciar aos pais um diálogo com seus filhos referente ao conteúdo da portaria “Toque de recolher” e, dessa forma, resgatar para a família o seu papel indelegável na elaboração de normas disciplinadoras de suas relações internas, em especial as que dizem respeito à educação.
Num mundo globalizado e tecnologicamente avançado a relação pais/filhos não pode ser mais autoritária. A democratização do processo educacional familiar tornou-se uma exigência. A divisão de tarefas, de obrigações, e, sobretudo a possibilidade dos filhos serem ouvidos e participarem na construção das normas disciplinares e de suas sanções, portanto das decisões familiares, tudo isso propicia a estes o desenvolvimento de uma responsabilidade social, muito útil para a vida em sociedade.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, na coluna Opinião, do dia 03.02.2011, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=102717);
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Professor de direito da criança na UFRR e Faculdade Estácio/Atual;
Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima;
Vice-presidente do Tribunal de Justiça de Roraima 2009/2011; e
Medalha Proteção Integral da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude 1999.
“Menores” só quando são problemas.
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
Durante a primeira década de 2000, especialmente, nas comarcas do interior, magistrados preocupados com a violência praticada e sofrida por adolescentes e crianças nas ruas, baixaram portarias limitando o horário da permanência destes nas vias públicas de suas cidades, na crença que tal medida pudesse ser a solução das causas daqueles problemas. Lamentavelmente só lembramos de nossos “menores”, quando esses são problemas.
Em Boa Vista, essa onda somente chegou na semana passada. As notícias que eram veiculadas diariamente em todos os periódicos de nosso país, no início desse século, não eram diferentes das que atualmente são publicadas em Boa Vista, pois retratavam ações isoladas ou o envolvimento de “menores” em grupos comandados por maiores na prática de infrações bárbaras, deixando-nos cada vez mais perplexos e estarrecidos pela crueldade e malvadeza que os caracterizavam.
Tais características de comportamento, torna evidente que a delinqüência juvenil na nossa cidade voltou a merecer reflexões aprofundadas e urgentes e que, na verdade, extrapolam questões jurídicas e soluções meramente legislativas de natureza repressiva, para situar-se num campo mais amplo e diversificado, que possibilite ações concretas num combate do problema em suas raízes.
A proposta de limitar o horário de nossos jovens nas vias públicas, não será a solução para a diminuição da violência juvenil e da violência que esses sofrem. Todavia, a mesma abriu um grande debate em todos os setores da sociedade.
Apenas devemos ter cuidado para que tal debate não sirva como artifício para desviar a atenção das verdadeiras causas do problema e transmitir aos boavistenses uma sensação ilusória de momentânea segurança.
Ao contrário do que a mídia propala, a delinqüência juvenil representa no Brasil apenas 10% da criminalidade e a maioria dos crimes praticados por adolescentes são contra o patrimônio, cerca de 73%, sendo que deste percentual 50% são furtos. A faixa etária de maior concentração de infratores está entre 15 e 17 anos, dados do Ilanud.
Só no Estado de São Paulo, por exemplo, 91% destes jovens sequer concluíram o ensino fundamental, o que demonstra que o problema está longe de ser uma questão de polícia, mas tratar-se de uma questão de educação.
A sensação do crescente índice de infrações cometidas por adolescentes em nossa cidade, nada mais representa do que o reflexo da incapacidade do Poder Público em promover o reequilíbrio social.
É flagrante no município a falta de apoio que os jovens e suas famílias necessitam e que deveria ser colocado à disposição desses por parte do Poder Público e da própria sociedade, para que preventivamente evitasse o ingresso dos adolescentes na delinqüência.
A ausência de políticas públicas na área infanto-juvenil ou da qualidade do atendimento dos poucos programas que existem, está levando os adolescentes a adentrarem a passos largos no caminho da marginalidade, a olho nú da elite roraimense, fazendo de nossos jovens verdadeiros personagens da trágica dramaturgia, na qual só existem vítimas.
Quem tem a coragem de negar que a violência desses “menores”, nada mais reflete do que a violência do meio em que vivem? Vivemos num Estado, que não foge a regra dos demais, onde o sistema social empurra os adolescentes para o caminho da delinqüência cada vez mais cedo.
Esses “menores” geralmente não conseguiram concluir os estudos, não possuem qualquer formação profissional, têm ou tiveram envolvimento com algum tipo de droga e acabaram encontrando nos crimes contra o patrimônio uma forma rápida de ganhar dinheiro e de também protestar contra o modelo econômico concentrador de riqueza e de privilégios sociais, gerador da exclusão social.
A desestrutura familiar, a falta de programas sociais e de políticas educacionais e de saúde, aliadas ao desemprego e a ausência de vontade política, e ainda somados às cenas de violência transmitidas cotidianamente pelos meios de comunicação, integram todos estes o conjunto dos principais vilões da geração da violência entre os jovens.
Assim, constitui-se em um desafio a mudança na ótica dos gestores públicos, para centrarem especial atenção às políticas governamentais da educação, da assistência social e da saúde, a fim de proporcionarem eficiência, eficácia e legalidade nas ações.
Os adolescentes como verdadeiros atores do teatro da vida, ao subirem no palco, acabam exprimindo como resposta para esta mesma sociedade, os atos de violência que sofrem e convivem. Portanto o enfrentamento da violência infanto-juvenil deve estar calcado no entendimento que crianças e adolescentes são as primeiras e maiores vítimas.
Enfrentar a violência infanto-juvenil significa investir na vida dos jovens e no que ela exige para que tenha plenitude. Quanto mais violenta uma sociedade, mais vulneráveis estarão as crianças e os adolescentes que efetivamente dependem do Estado no seu papel insubstituível de regulador das relações sociais.
Até quando o Poder Público continuará sendo negligente para priorizar suas crianças na forma da Constituição e incompetente para assegurar os preceitos do ECA? Até quando faltará vontade política para que os orçamentos públicos contemplem as políticas de direitos da criança e do adolescente? Até quando vamos continuar ouvindo das autoridades públicas que o culpado pela violência dos “menores” é a lei? Quando que o Conselho Tutelar terá uma estrutura coerente com suas atribuições?
Enquanto isso, temos que depositar nossas esperanças numa portaria, para que consiga ao recolher os jovens das ruas mudar esse cenário, não só para proteção do patrimônio do grupo dominante, mas sobretudo para nossas crianças, segmento vulnerável e objeto da dominação, com a efetivação de seus direitos fundamentais que possibilitarão uma transformação de “menores” problemas para adolescentes cidadãos.
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Professor de direito da criança na UFRR e Atual
Prêmio das Nações Unidas/Unicef 1999
Especialista em violência doméstica contra criança – USP
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, na coluna Opinião, do dia 25.01.2011, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=102186);
Liberdade e segurança pública.
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
No último artigo da quinta passada, abordamos a entrada do adolescente autor de ato infracional (infração penal) no sistema de justiça, bem como o papel da polícia judiciária nessa área. Hoje daremos continuidade ao tema segurança pública para incluirmos nos debates as práticas e ações da polícia militar no seu relacionamento com crianças e adolescentes.
Num período em que a corporação militar tem sido solicitada para combater as denominadas “galeras”, que atuam, especialmente, nos bairros considerados periféricos de nossa cidade, aterrorizando seus moradores com ações bárbaras e colocando em risco a vida e o patrimônio daqueles, não se há de admitir o amadorismo que, segundo especialistas do tema, estrategicamente, dribla as circunstâncias e mergulha no ócio.
Para tanto o policial militar terá que estar readaptado às atuais exigências e situado diante da realidade a enfrentar. Deve estar preparado para uma luta que, sabemos todos nós, está inferiorizado e, assim, deverá ter, no mínimo, senso profissional. Esse senso surge do entendimento pelo policial de sua missão na área infanto-juvenil, o que lhe possibilitará trabalhar com equilíbrio e acerto.
A história do novo relacionamento do policial militar com crianças e adolescentes em Roraima iniciou-se em 1990. A nossa Polícia Militar cumpriu seu dever de casa ao realizar diversos cursos, capacitações e treinamentos de seus oficiais e praças, para melhor compreensão da nova lei que entrava em vigor – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Isto foi um fator decisivo para possibilitar uma nova visão de seu papel institucional no trato com os jovens.
Os policiais militares assumiram posturas garantista, tutelar, pedagógica e de operador social. Foi justamente nestas posturas que se construiu o farol que norteou durante 20 anos a intervenção da Policia Militar no campo infanto-juvenil nas ruas de Boa Vista. Não foi fácil vencer dentro da corporação os adeptos da doutrina convencional-repressiva, para que direcionassem seu olhar para os valores sócio-normativos que fundamentam a doutrina da proteção integral.
Para isto, tivemos que trabalhar inicialmente a quebra de paradigma. Os policiais tiveram que adotar posturas totalmente diversas daquelas anteriormente previstas no Código de Menores de 1979. Introduziu-se inicialmente na Polícia Militar um atuar garantista, o que representou profunda mudança de hábitos e de atitudes por parte de seus policiais, uma vez que implicou na adoção de uma doutrina nova para o policiamento.
Uma revisão de conceitos se impôs com a vigência do ECA, pois os da doutrina convencional-repressiva tornaram-se superados, como: menor infrator, situação irregular, ações de recolhimento, elemento, desvio de conduta e tantos outros, que passaram a ser traduzidos por cidadão, proteção integral, apreensão, sujeito de direitos, ato infracional e etc.
O garantismo incorporado pela Polícia Militar, tornou-se modelo para o Brasil. Criou-se a disciplina de direito da criança na Escola de Formação de Policiais Militares, bem como um grupo especializado de policiais para combater o ato infracional, a designação de um oficial para ser o elo entre o comando e as entidades que diretamente trabalhavam com as questões da infância e da juventude, a participação deste nas reuniões mensais do “Pacto pela Infância” e de oficiais em cursos de atualização em direito da criança, dentre outras ações inovadoras.
A postura garantista da nossa Polícia Militar fez-se sentir com a construção de uma cultura organizacional de respeito ao novo direito da criança e do adolescente e, consequentemente, com a redução de denúncias de violência praticada por policiais militares contra os jovens. Essa postura era o instrumento que distribuía justiça.
Naquele momento histórico, Roraima acompanhava a grande onda provocada pela Constituição de 1988. Virávamos, como em todo país, a página de um Estado autoritário, cuja ideologia vigente era a repressão, para assumirmos uma luta de implementação das liberdades públicas e de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, que perdura até os dias atuais.
Evidentemente que um reordenamento institucional se impôs ao braço forte do Poder Público. Essa transformação é conseqüência do aperfeiçoamento das regras do direito que ocorrem à medida que a sociedade evolui.
Outra postura colocada em prática pela Polícia Militar, que estava ligada à função preventiva, foi a de extinguir as ações de recolhimento de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social das ruas, excepcionando as que estivessem em flagrante de ato infracional (infração penal).
As novas ações passaram a ter como objetivo tornar as ruas tão seguras, onde aí pudessem estar nossos filhos, as crianças para brincar e os adolescentes para exercer o seu direito fundamental de ir e vir. Esta postura de natureza tutelar ocorreu na medida em que as ações protegiam os direitos individuais e coletivos da sociedade boavistense.
Ora, tutelar é proteger a todos, inclusive as crianças e adolescentes. O policial militar que estava na rua, deixou as ações repressivas para a história, e passou a entender as incompreensões, as hostilidades e a fragilidade a que estão expostos os meninos “na rua”, que são estigmatizados pela própria sociedade como “pivetes”, “di menor”, “malandros”, “vagabundos” e “trombadinhas”.
Essa inovadora postura, de caráter tutelar, significou o reconhecimento dos direitos fundamentais e humanos do cidadão criança/adolescente. Tal comportamento institucional é compatível com o espírito democrático e republicano de nossa Lei Maior.
Essa mudança de agir possibilitou colocar no trilho da legalidade as intervenções dos policiais militares quanto às questões referentes às crianças e os adolescentes. Garantiu-se o direito à liberdade, ao respeito e a dignidade dos jovens.
Dessa forma, a corporação militar compreendeu ser ilegal a ação policial baseada em “arrastões” (hoje, “Toque de recolher”), onde os jovens eram recolhidos (presos) por “atitudes suspeitas”, por estar vagando pelas ruas ou mesmo por miséria.
Como tratado no artigo da semana passada, tais ações desrespeitam os preceitos dos casos legais de prisão, não justificando o discurso do pretexto das “operações policiais” objetivarem “limpar as ruas das galeras” ou ajudar aos pais para que seus filhos fiquem dentro de casa. Não se negociam os direitos fundamentais, pois são cláusulas pétrias, são conquistas da humanidade, são bens inalienáveis e eternos.
Para garantir esses valores anote-se que o ECA estabeleceu como crime (art. 230) a privação de liberdade de criança ou adolescente (deter, recolher, apreender e prender) sem flagrante de ato infracional ou diante da inexistência de ordem escrita do juiz da infância e da juventude.
Outra postura adota pela Polícia Militar foi a pedagógica. Essa provocada pelas duas posturas anteriores. Não só a intervenção policial deverá ocorrer nos estritos casos da lei, mas, também, sua execução. As intervenções feitas por policial em relação à criança ou adolescente que se afastam da lei tornam-nas inadequadas, produzindo nos jovens marcas indeléveis.
Assim, o policial militar que adotou as posturas garantista, tutelar e pedagógica transformou-se no policial operador social tão desejado pela sociedade, cujo agir se amolda aos mais avançados documentos legislativos sobre infância e juventude.
Dessa vez terminamos o artigo da semana indagando se a ação de recolher o jovem que está na rua, sem estar cometendo qualquer tipo de ato infracional, porém pelo simples fato de estar “desacompanhado” não estaria criando um novo tipo de “bulling”? Não se estaria dando asas à presunção de culpa ao invés da presunção de inocência? Que tipo de reação/emoção causa nas pessoas, em especial, em nossos adolescentes uma injustiça? Raiva, ódio, intolerância? E qual será a repercussão no grupo social desses jovens, como eles se sentirão diante dos colegas e como serão tratados após o recolhimento? Ponha-se no lugar deles e reflita…
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Professor de Direito da Criança da UFRR, UERR e Estácio/Atual;
Professor convidado da Pós-graduação em Direito da Criança da UERJ em 2007;
Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima; e
Medalha do “Forte São Joaquim da Polícia Militar de Roraima” em 2002.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, na coluna Opinião, do dia 01.03.2011, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=104301);
À polícia o que é da polícia, à sociedade o que é da sociedade…
Geysa Brasil*
geysabrasil@hotmail.com
Mauro Campello**
maurocampello@tjrr.jus.br
Preocupado com a repercussão da notícia veiculada na Folha de Boa Vista da semana passada, de que os órgãos de repressão do Estado estenderiam a Operação “Anjo da Guarda” para outras cidades de Roraima, resolvemos provocar e instigar reconhecidos profissionais da área infanto-juvenil de nosso Estado a participar do debate nesta coluna, que se abriu em razão da recente portaria de retirar adolescentes desacompanhados dos logradouros públicos, após as 23h30min, inicialmente, na capital.
Para tanto convidamos a psicóloga Geysa Brasil, a fim de que pudéssemos escrever em conjunto algumas linhas sobre tal tema. Lembramos que Geysa, nestes 20 anos de existência do Estatuto da Criança e do Adolescente, notabilizou-se no cenário nacional como uma incansável militante na implementação dos preceitos da primeira lei democrática, após a queda do regime militar.
O convite ocorreu domingo passado em minha residência. Depois de muitas reflexões e lembranças dos programas sociais desenvolvidos em nossa cidade, concluímos que deveríamos escrever, inicialmente, sobre a “desjudicialização” do atendimento social em Roraima, fato que ocorreu a partir da última década do século passado, ou seja, logo após a entrada em vigor do ECA.
No início dos anos 90, a sociedade roraimense conquistou reconhecimento não só nacional, mas também no exterior, pela correta aplicação da normativa internacional referente à infância e à adolescência, principalmente no trato da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU – 1989).
Foi o tempo da criação de órgãos com atuação específica na área, bem como de implantação dos programas de prevenção. Paralelo a isso, discutia-se a importância dos conselhos de direitos e do conselho tutelar como instrumentos da sociedade para traçar a política de atendimento e também atender a demanda social, deixando para a segurança a demanda de natureza judicial. Por isso, a exigência legal de cada município ter ao menos um conselho tutelar e um conselho de direitos.
Sobre este assunto, recordamos a palestra do Des. Amaral e Silva (TJSC), autor do ECA, num seminário da infância realizado no Palácio da Cultura, para quem o Judiciário foi pensado e estruturado para julgar, ou melhor, decidir os conflitos que são levados ao seu conhecimento, mediante ação judicial; enquanto ao Executivo compete a execução das políticas públicas para atender as demandas sociais.
Interessante registrar que foi com o Código Mello Mattos de 1927 que se criou no Brasil a idéia da “ação social do juízo de menores”. A praxe desse atendimento reforçou no imaginário coletivo que as atribuições dos juízes com atuação nessa área fossem de amparar, assistir, educar, instruir, cuidar do corpo e do espírito dos menores.
O Código de Menores seguinte, de 1979, elaborado numa época em que os direitos e garantias fundamentais estavam suspensos, incorporou tal pensamento. Sua base era a doutrina da situação irregular, sustentada em colunas cuja ideologia imposta à sociedade pautava-se no controle, na vigilância e na repressão dos menores. Acreditava-se que o juiz de menores poderia resolver através de portarias e alvarás as mazelas sociais da infância e juventude.
Com a vigência do ECA terminava a atuação do juiz “bom pai”, do juiz que dá conselhos e do juiz considerado, pejorativamente no mundo jurídico, como “de menor” importância (preconceito forense). O juiz deixava de ser um assistente social de toga, para ser um verdadeiro juiz de direito. De juiz de menores transformou-se em Juiz da Infância e da Juventude, passando o conselho tutelar a ser o porto seguro para nossos jovens quanto ao atendimento de suas demandas sociais.
Virava-se a página da história. Crianças e adolescentes deixaram de ser objeto do direito e passaram a ser sujeitos de direitos. O magistrado recebeu novas competências, adequadas a sua formação jurídica e humanista. Uma nova história passou a ser escrita. Agora o juiz da infância e da juventude julga ações que versem sobre violações aos direitos de nossas crianças e adolescentes, como as ações civis públicas, as garantias fundamentais, as ações civis referentes aos direitos humanos de crianças, as ações socioeducativas dos adolescentes autores de crimes ou contravenções penais, feitos de adoção, alimentos, guarda, tutela, destituição do poder familiar e tantos outros processos que resguardem a dignidade e o respeito desse segmento social.
Era o final de uma história fracassada da Justiça de Menores, pensada e criada no Código de 1979, que, em síntese, varria os problemas sociais, como os “menores” de rua, para dentro de depósitos (FEBEM), sob o falacioso discurso de que o recolhimento dos jovens em “educandários” seria a oportunidade que lhes fora negada para construírem um projeto de vida, ou melhor, de poderem voltar a sonhar.
A partir da Constituição de 1988 ingressamos numa nova era. A era dos direitos e da cidadania. Quebrou-se o paradigma anterior. Implantou-se a doutrina sócio-jurídica da proteção integral. Um novo olhar se impôs aos novos atores do sistema sobre as questões da infância e da juventude. Um reordenamento institucional tornou-se necessário.
Roraima soube muito bem cumprir sua tarefa de casa, pois desfraldava-se a bandeira do “vamos fazer juntos”. As ações foram batizadas de “Pacto pela Infância”, pois estas não nasciam em gabinetes, eram pensadas e construídas sempre entre a sociedade e o Poder Público. Eram executadas de forma articulada. Estado e Município, a par de suas diferenças políticas, criaram programas de atendimento aos jovens – Centro de Capacitação; Menino do Dedo Verde; Executivo Juvenil; Educadores de Rua; Fanfarras; Centro de Recuperação e Promoção Humana para os usuários de drogas; Projeto Crescer, competições esportivas e apresentações teatrais e musicais à noite e nos períodos de férias, entre tantos outros. Enquanto discutia-se a criação de outras ações de prevenção secundária, implantava-se uma política pública educacional de visão, a Escola em Tempo Integral.
As Secretarias de Educação Municipal e Estadual desenvolviam programa inédito, que serviu de exemplo para outros estados, levando o ECA às escolas por meio de cursos sobre a nova lei para diretores e professores. Época em que se viu a tão salutar e educativa “queda dos portões de ferro” das chamadas escolas do cone sul (além da Avenida Venezuela) em virtude do fim das “galeras”. As escolas tomaram ares de escola, até a arquitetura passou a ser um educador visual.
Ainda naquela época podiam-se testemunhar as Secretarias de Promoção Social com seus programas “Educadores Sociais” ou “Educadores de Rua” que consistiam, basicamente, em capacitar jovens entre 25 e 30 anos para estarem nas ruas diuturnamente verificando a situação dos “meninos na rua”, cadastrando-os, fazendo visitas domiciliares e promovendo, com o apoio dos demais parceiros, seus retornos à família. À polícia o que é da polícia, à sociedade o que é da sociedade.
Tecia-se a sonhada “rede social”, colocava-se em prática um verdadeiro mutirão, esse sim, capaz de fazer a intervenção necessária para interromper o ciclo perverso e vicioso do histórico abandono da infância brasileira. Cada órgão fazia muito bem sua parte, ao final todos foram vitoriosos, sociedade e Poder Público, conforme expressivos dados estatísticos de redução de meninos nas ruas de nossa cidade, do trabalho infantil, da delinqüência juvenil, da reincidência no Estado e outras questões. O reconhecimento foi chancelado por abalizadas instituições nacionais e por reconhecidos organismos internacionais.
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Psicóloga pela UNB;
Bacharel em Direito pela UFRR;
Especialista em Violência Doméstica contra Criança – USP; e
Assessora jurídica do Tribunal de Justiça de Roraima.
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Professor de direito da criança na UFRR e Faculdade Estácio/Atual;
Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima;
Prêmio das Nações Unidas/Unicef 1999; e
Acadêmico do 3º ano do curso de bacharelado/licenciatura em História da UFRR.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, na coluna Opinião, do dia 04.03.2011, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=104511);
Boa Vista tem “menores de rua” ou meninos “na rua”?
Geysa Brasil*
geysabrasil@hotmail.com
Mauro Campello**
maurocampello@tjrr.jus.br
As autoridades que estão à frente da Operação “Anjo da Guarda” reconhecem que para a efetivação da portaria “Toque de recolher” torna-se necessário o recolhimento (eufemismo para preso) dos adolescentes que estão desacompanhados e perambulando pelas ruas da cidade depois das 23h30min e suas conduções para delegacia, onde serão entregues mediante termo de responsabilidade para seus pais ou responsável. Matéria da Folha de Boa Vista do dia 11.02.2011, confirma que 40 adolescentes foram apreendidos (presos) e conduzidos para delegacia da infância e da juventude da capital.
Esta matéria foi polêmica e provocou grandes discussões na manhã desse último domingo, quando nos preparávamos para alinhavar algumas reflexões sobre o papel dos conselhos estadual e municipal de direitos da criança e suas atuações em Boa Vista e em Roraima. Acabamos sendo instigados a mudar o tema, pois não poderíamos deixar de aproveitar a oportunidade para fazermos certas considerações e contrapontos aos discursos que procuraram justificar ações policiais para o controle de questões sociais e, sobretudo, familiares.
Abordagens do conselho tutelar, do juizado e da delegacia da infância e da juventude, desde nossa época de atuação até hoje, demonstram através de estudos de caso, que cada menino “nas ruas” de Boa Vista e porque não dizer, de todo o Estado, tem nome, sobrenome, endereço certo e referência familiar. Portanto, mesmo nos tempos atuais, Boa Vista não tem “menores de rua”, aqueles que perderam a referência familiar e fazem da rua sua morada. Temos sim, meninos “na rua”, precisando de apoio, orientação pessoal e familiar.
Acreditamos firmemente que a intervenção necessária não é com o adolescente e sim com sua família. A família é quem deve ser o foco de todas as ações. Ora, se o que temos na nossa capital e nas cidades do interior são meninos “na rua” tínhamos que avançar para escola de pais. Isto mesmo, escola para ensinar os pais (cada vez mais jovens), a educar, construir limites, dar disciplina, transmitir valores e princípios morais.
Em outras palavras, aos pais incumbe o dever de humanizar seus filhos para a convivência social, vale dizer, aos adultos do entorno dos jovens compete tornar humano o “bicho” homem (espécie humana). Aos pais não compete apenas o dever de provedores dos bens materiais. Existem bens afetivos (amor, gratidão, tolerância) que somente o vínculo familiar é capaz de desenvolver. Maravilhoso o artigo publicado na coluna Opinião da semana passada pelo promotor da infância e da juventude Márcio Rosa, para quem, a família é sinônimo de afeto.
O “Toque de recolher” é medida ideal para pais sem compromisso, pais irresponsáveis, pais preguiçosos, pais que não se ocuparam e nem se ocuparão de colocar ordem e disciplina para seus filhos. Pais que jamais se preocuparam com a educação dos mesmos. Ao contrário, dirão: “quer ir para rua? pode ir, o juiz dará um jeito nele”. Lembram da figura do juiz “bom pai” do antigo Código Menores, objeto de análise do artigo anterior? A portaria conseguiu ressuscitá-lo. Portanto, a quem verdadeiramente interessa esse tipo de medida substitutiva da autoridade familiar?
O que verdadeiramente é permanente na vida desses jovens são suas relações familiares. Essas sim serão “para sempre” e por isso mesmo é para elas que se devem dirigir os holofotes das políticas públicas. Onde estão os educadores sociais? Que fim levou o programa? Os educadores de rua eram as longas mãos da sociedade mobilizada, cuidando de seus problemas. Eram pessoas preparadas e capacitadas para intervir com técnica na questão social das famílias que “nunca tiveram“ ou “perderam” o controle sobre seus filhos. Chega de descontinuidade, de desperdício do dinheiro público.
A hora não é mais de medidas paliativas. É hora de aprofundar e ampliar a democracia, as liberdades individuais e tantos outros valores conquistados arduamente com a luta incansável daqueles que não se renderam às sociedades autoritárias.
Estamos dizendo isto, enquanto ainda é tempo, porque nos dias atuais se pode contar o número de jovens nas ruas de Boa Vista e, como já mencionamos, todos com referência familiar, ainda que família extensiva (avós, tios, padrinhos). Não importa que não tenham pai ou mãe, tanto mais em tempos de diferentes configurações familiares (tradicional, monoparental, homoafetiva) todas merecedoras da tutela legal do Estado.
Vamos juntos em uma demonstração inequívoca de brasilidade, tirar do papel a “prioridade absoluta” constitucional para nossas crianças. Vamos transformar nossos jovens que hoje são cidadãos de papel em verdadeiros cidadãos, transformando a Roraima real na Roraima legal. Vamos cobrar de quem tem o dever na operacionalização das políticas públicas na área dos meninos “na rua”, para que não se transformem, num futuro próximo, em “menores de rua”.
Uma das formas de priorizar nossas crianças seria o repasse do Estado e dos Municípios do ínfimo percentual de seu orçamento (apenas 1%) para o FIA (Fundo da Infância e Adolescência) conforme já determina a Lei. Dinheiro pouco, mas que poderia estar sendo investido em políticas públicas que deram certo no passado para o controle das questões sociais, especialmente dos meninos “na rua”.
Com pesar, constatamos que nossa Roraima, nos últimos cinco ou seis anos, tem caminhado sem planejamento e vontade política na área infanto-juvenil, com amadorismo, por isso mesmo, ao tempo que dá 10 passos à frente, volta 12 atrás, ou seja, não avançamos. Ao contrário, algumas vezes regredimos. Podemos mesmo dizer que aqui é a terra do “já teve”. Fomos exemplo para o Brasil e para a América, porém, agora, contrariando sua própria história, aplaudimos o braço forte do Poder Público intervindo em questões sociais.
Vamos retomar unidos a caminhada do ponto em que paramos, sem retrocessos. Adiante, avante! Mais investimento, mais políticas públicas, mais profissionalismo no trato das questões da área infanto-juvenil, mais democracia. Prioridade absoluta para o nosso amanhã!
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Psicóloga pela UNB;
Bacharel em Direito pela UFRR;
Primeira psicóloga do juizado da infância e da juventude de Boa Vista 1992/1997; e
Pós-graduada em Direito da Criança e do Adolescente pela Universidade Cândido Mendes.
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Professor de direito da criança e do adolescente na UFRR e na Faculdade Estácio/Atual;
Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima;
Primeiro juiz da infância e da juventude de Boa Vista/RR 1991/2000; e
Doutorando em direito pela Universidad Nacional Lomas de Zamora – UNLZ/Arg.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, na coluna Opinião, do dia 17.02.2011, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=103593);
Qual é o papel da polícia na área infanto-juvenil?
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
O cenário que nos inspirou a escrever o artigo dessa semana foi o Engenhão, estádio no Rio de Janeiro, palco da semifinal desse domingo entre Flamengo e Botafogo, com aproximadamente 31 mil torcedores presentes.
Chamou-nos a atenção para presença de muitos jovens nas duas torcidas. Eram crianças acompanhadas de seus pais, grupos de adolescentes, alguns sozinhos, outros juntos com a namorada, além daqueles integrantes das torcidas uniformizadas. Ficamos impressionados com a presença da polícia e suas ações mantendo a ordem e a segurança de todos, não só dentro do estádio, mas também no seu entorno.
Garantiu-se a convivência comunitária e o lazer dos jovens sem a necessidade de limitações a sua liberdade. Observamos durante o tempo do jogo e nos momentos de chegada e saída do estádio, o respeito dos adolescentes – não medo ou temor, pela polícia. E porque não dizer um sentimento de admiração. Isto nos levou a uma reflexão sobre o verdadeiro papel da polícia.
Afinal, qual seria seu papel num Estado Democrático de Direito?
Subordinada ao poder executivo, a polícia judiciária é um organismo civil que tem como finalidade única zelar pela “ordem” e segurança públicas. Para alcançar este desiderato a polícia judiciária deve exercer permanente e discretamente a vigilância em todos os lugares e a proteção das pessoas, individualmente consideradas, ricas ou pobres, maiores ou menores, ou ainda em grupos, como das comunidades legitimamente constituídas.
Deve, além disso, inteirar-se de fatos e circunstâncias que sejam de interesse policial. Não obstante a vigilância e a proteção policial caracterizados no policiamento, a ocorrência de infração penal confere também a polícia judiciária a atribuição de apurar o fato, como forma especial de colaboração ao poder judiciário.
Portanto, a atuação policial é limitada à apuração do fato criminoso, ou tido como criminoso, e da sua autoria. Busca fornecer os elementos necessários a justiça, para que possa decidir a respeito. Por isso, o nome de polícia judiciária.
A compreensão dessa limitação legal é de suma importância. Uma das pedras fundamentais do Estado Democrático de Direito. Tal restrição representa a própria garantia da liberdade jurídica prevista em nossa lei maior, ou seja, na Constituição Federal.
Isto nos revela de imediato que a intervenção policial no campo infanto-juvenil deve cingir-se exclusivamente aos comportamentos das crianças e dos adolescentes que descrevam crimes ou contravenções penais (chamados de atos infracionais).
Quanto aos atos infracionais praticados pelas crianças (pessoas até 12 anos incompletos), o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA resume o papel da polícia judiciária na apreensão (prisão) daquelas e suas apresentações (entrega imediata) ao conselho tutelar, que será o órgão competente para adotar as medidas protetivas que o caso requer, salvo se o mesmo não existir na cidade, hipótese em que o juiz da infância e da juventude fará a vez, o que não é a situação de nossa cidade.
Em referência aos atos infracionais praticados por adolescentes (pessoas de 12 até 18 anos incompletos), o ECA determina a polícia judiciária que proceda a apreensão (prisão) em flagrante dos adolescentes em conflito com a lei e os conduza a delegacia especializada para as devidas providências legais.
Não havendo flagrante, porém ocorrendo um ato infracional, nada impede na lei de regência que a polícia judiciária proceda a abertura, mediante portaria da autoridade policial, de procedimento administrativo investigatório.
Para saber quando o adolescente ou a criança pratica ato infracional, basta socorrer-se ao mesmo Código Penal ou a legislação complementar penal aplicada aos maiores de 18 anos. Logo, se a conduta da pessoa menor de 18 anos descrever uma infração penal, é porque cometeu em tese um ato infracional e poderá incidir na reprovabilidade penal juvenil, que autoriza receber uma sanção.
Essa é a chave – ato infracional, para o adolescente adentrar no sistema de justiça da infância e da juventude e ser responsabilizado por seu comportamento penalmente reprovável.
Dessa forma, não se pode negar que para o ECA a criança e o adolescente deixam de ser vistos como “coitadinhos”, que necessitam de caridade humana, para serem enxergados como titulares não só de direitos, mas, também, de deveres. Permitiu serem autores e atores de suas próprias histórias.
Ao contrário do Código de Menores de 1979, o Estatuto devolve a cidadania àqueles, antes tratados como um “lixo social”, como também os sanciona por cometerem infração penal. Sem a prática do ato infracional pelo adolescente ou pela criança não há motivo que autorize a ação policial.
O respeito a essa lei, à liberdade e à dignidade dos jovens não representa que a segurança pública esteja alijada do processo de resgate da cidadania infanto-juvenil. Claro que não!
É da polícia que se espera a defesa do fraco e do oprimido. É ela que exigirá o cumprimento da lei por parte da sociedade, da família e do próprio Estado em favor dos jovens. Para tanto, a polícia deve mudar o seu agir, que por séculos, esteve a serviço dos grupos dominantes.
Os tempos modernos mudaram e repudiam qualquer estratégia autoritária (mesmo com as melhores intenções), especialmente quando as ações recaem sobre seres em desenvolvimento e em formação, que necessitam de atendimento especializado, a fim de se deter o processo de marginalização a que são empurrados.
Vivemos tempos de transformações das instituições. As ações policiais devem ser dirigidas contra os comerciantes que vendem bebidas alcoólicas as crianças, contra os traficantes que disseminam as drogas nas portas das escolas e nas praças, contra aqueles que explorem sexualmente as adolescentes, contra os pais omissos, violentos e abusadores de seus filhos e aos adolescentes autores de atos infracionais, porém nunca contra as crianças e adolescentes vítimas desse sistema ou mesmo os adolescentes filhos da miséria.
Até agora a sociedade apenas conheceu dados estatísticos da “Operação Anjo da Guarda” quanto ao recolhimento (eufemismo de prisão) dos meninos “na rua” após 23h30min. Estamos ansiosos aguardando os dados daquela quanto às verdadeiras infrações penais praticadas contra os meninos nas “ruas”.
Terminamos esse artigo com a letra da música do grupo Titãs: “Dizem que ela existe/Prá ajudar! Dizem que ela existe/Prá proteger! Eu sei que ela pode/Te parar! Eu sei que ela pode/Te prender!… Polícia! Para quem precisa/Polícia! Para quem precisa/De polícia… Dizem prá você/Obedecer! Dizem prá você/Responder! Dizem prá você/Cooperar! Dizem prá você/Respeitar! Polícia! Para quem precisa/Polícia!…”
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Professor de direito da criança da UFRR, da UERR e da Faculdade Estácio/Atual;
Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima;
Diplomado pela Escola Superior de Guerra – CAEP/2007; e
MBA em Política, Estratégia e Gestão pela UFRJ/2007.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, na coluna Opinião, do dia 25.02.2011, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=104095);
Todo menino na rua é um infrator?
Geysa Brasil *
geysabrasil@hotmail.com
Mauro Campello**
maurocampello@tjrr.jus.br
A Folha de Boa Vista, que circulou nos dias 26 e 27 de março, trouxe na coluna Cidade matéria sobre a prorrogação por mais dois meses da Operação “Anjo da Guarda”, aquela baseada na portaria judicial apelidada de “Toque de recolher”, que “legalizou” ação policial de recolhimento de crianças e adolescentes das ruas, por apenas estarem desacompanhados de seus pais ou responsável após 23h30min.
Como efeito, tal medida não só ratifica a transferência para uma instituição que legal e tecnicamente não se acha habilitada para este papel, tema amplamente debatido no artigo “Qual é o papel da polícia na área infanto-juvenil?” veiculado neste espaço, como desprezou mais uma vez os deveres históricos da instituição família, força motora e geratriz de cidadãos ajustados e dignos, da criação e formação de seus filhos e da transmissão a estes dos valores morais e sociais.
Pedagogos, juristas, psicólogos, médicos, assistentes sociais, sociólogos e antropólogos escrevem alertando para o perigo das crianças serem educadas mais pelas babás ou pelos professores do que mesmo pelos pais, mas o que dizer agora pela polícia?
Nesta semana, queremos nos reportar aos olhares desavisados, porque à primeira vista pode parecer uma solução, porém, como todo “jeitinho brasileiro”, resolve apenas o momento (se é que resolve). Em pouco tempo, vai faltar estrutura, o ônibus vai quebrar, vai faltar pessoal, não vai ter fiscalização, vão mudar as autoridades que pactuaram a medida. E tudo voltará a ser como antes, pois a solução do problema não é de caráter repressivo-preventivo.
A questão é de cunho social e envolve seres humanos em fase de desenvolvimento, portanto, a exigir um outro olhar e uma intervenção totalmente diversa da adotada.
Cabe nesta oportunidade registrar que em pesquisa as cidades onde se tentou implantar esta medida, a comunidade local a rejeitou, ora manifestando-se através de movimentos organizados por órgãos como os conselhos de psicologia, de assistência social, de medicina, OAB, Fórum de Defesa dos Direitos da Criança, pelas igrejas, pelos conselhos de direito e pelos meios de comunicação, ora recorrendo-se ao Conselho Nacional de Justiça pela via administrativa, ou ainda, socorrendo-se judicialmente com a utilização pelo Ministério Público ou pela Defensoria Publica da Infância e da Juventude das garantias constitucionais.
Os adolescentes que estão em nossas ruas, em qualquer horário do dia, não caíram de Marte. Alguns são órfãos de pais vivos e marginalizados por um sistema injusto. Muitos são empurrados para as ruas na busca do sustento de sua família. Outros se utilizam delas como abrigo devido à violência que sofrem em seus lares ou pelo próprio abandono imposto por seus pais.
Em Roraima, o número de meninos na rua é bem maior do que o índice de meninos de rua. Basta analisar os dados fornecidos pela Operação “Anjo da Guarda” que informa o recolhimento de 133 adolescentes pelo simples fato de estarem nas ruas desacompanhados após o horário fixado na portaria judicial.
Este contingente de jovens apreendidos pela polícia e entregues pelo conselho tutelar aos seus pais ou responsável somente demonstra o que afirmamos em artigo anterior – temos em nossa cidade meninos na rua e não de rua.
Os meninos de rua são aqueles que foram rejeitados por suas famílias antes mesmo de nascer. Ao sentirem essa tragédia buscam uma solução. Partem para as ruas e se perdem na multidão. Passam a viver nos logradouros públicos da cidade. São esquecidos, não têm valores religiosos, morais e humanos.
Estes meninos, diversamente dos meninos na rua, são obrigados a se refugiarem em prédios públicos abandonados, obras inacabadas, em terrenos baldios, nos pontos de ônibus, nas praças, de baixo de marquises do comércio, nos bairros periféricos ou em qualquer outro lugar por tempo indeterminado.
Eles estão nas ruas com um só objetivo: exercitar aquilo que não lhes foi assegurado – o direito à sobrevivência. Estes jovens se acham em um verdadeiro estado de vulnerabilidade capaz de levá-los à delinqüência. Mas isto não significa que sejam considerados, desde logo, infratores.
Os meninos de rua representam à inércia do Poder Público, o desprezo da sociedade e a omissão da família. Assim, esse segmento de excluídos no Brasil já soma um exército de aproximadamente 36 milhões.
Sem nenhuma chance de mudança desse cenário os meninos de rua criam outras formas de sobrevivência. Nesta oportunidade podemos citar a formação de “galeras” ou “gangues”. Devido o objetivo comum – de sobrevivência e somado as histórias de vida semelhante, estes jovens se reúnem para formar grupos, que com identidade própria, passam aterrorizar a cidade praticando os mais variados atos infracionais a merecer somente neste momento a intervenção do sistema de segurança pública.
Não temos nenhuma dúvida de que rua é sinônimo de risco. Risco pessoal e social. Atualmente a rua, como qualquer outro espaço público, não é mais lugar de crianças e jovens e porque não dizer até de adultos, devido à violência urbana que convivemos diariamente. Uma total insegurança.
Logo, tanto o menino na rua como o menino de rua estão vulneráveis ao processo de delinqüência que se constrói nessa. Ambos são carentes de apoio, de uma relação de ajuda e de uma política de atendimento.
Por isso, insistimos para que a família, a sociedade e o Estado reflitam sobre algumas indagações que surgem dessa medida de recolhimento que está sendo prorrogada, como por exemplo, que tipos de ação irão contribuir para tirar efetivamente nossos jovens da rua? Será que recolhê-los em “carrocinhas” como se faz de tempos em tempos com os animais irá resolver?
Temos que aprofundar o debate, pois para onde irão voltar esses jovens recolhidos? Que família irão encontrar? Por que a rua tem sido mais atrativa do que o núcleo familiar? Será que os adultos do entorno desses jovens tem sido um bom exemplo para eles? Qual tipo e qual intensidade de violência estão presentes na família desses jovens que preferem as ruas? Ora, se é da natureza humana fugir do perigo para sobreviver, então, esses jovens estão fugindo de que?
Com a palavra os atores do sistema infanto-juvenil.
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Psicóloga pela UNB;
Bacharel em Direito pela UFRR;
Especialista em Violência Doméstica contra Criança e Adolescente – USP/2000; e
Assessora jurídica do Tribunal de Justiça/RR.
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Professor de direito da criança e do adolescente na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual;
Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima;
Vice-presidente da Associação Nacional de Magistrados Estaduais – ANAMAGES – 2008/2011; e
Medalha da Proteção Integral de Crianças e Adolescentes da ABMP/2000.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, na coluna Opinião, do dia 01.04.2011, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=106138);
A “desjudicialização” do atendimento social da criança e a lógica do poder.
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
Graças à audiência pública realizada na quinta, 31.03.2011, no plenário da Câmara Municipal de Boa Vista/RR, pudemos reencontrar pessoas que há muito tempo se dedicam à luta pela afirmação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, como Ivone Salucci, Lúcia Casarim e a profa. Ednelza Farias, todas integrantes do Fórum de Defesa dos Direitos da Criança de Roraima (FDCA), bem como outras ativistas sociais como a psicóloga do Tribunal de Justiça Geysa Brasil e a educadora Antônia Vieira, então secretária de educação do Estado.
Participaram também da audiência vereadores, defensores públicos, juízes, delegados de polícia, oficiais da polícia militar, servidores do juizado, secretários, conselheiros de direitos e tutelares, estudantes, a imprensa e a comunidade.
Diversos atores do sistema infanto-juvenil compartilharam suas vivências e apresentaram suas opiniões sobre a proposta de prorrogação da operação policial “Anjo da Guarda”, deflagrada num simples acordo apelidado de “Toque de Recolher”, que autorizou a polícia apreender, após às 23h30min, crianças e adolescentes que estivessem nas ruas desacompanhados de seus pais ou responsável.
Foi muito gratificante participar desta audiência. Sentimo-nos honrado com a lembrança de nosso nome pela presidência do Poder Legislativo local e ao mesmo tempo tivemos a certeza de que nossos argumentos continuam atuais e vivos no seio social, pelo fato de termos sido compreendido e aceito em nossas idéias.
A realização desse espaço de discussão e a socialização de concepções e experiências no enfrentamento das questões que envolvem os meninos de/na é sem dúvida alguma a melhor forma de contribuir para a apresentação de propostas de reformulação das ações contidas na operação “Anjo da Guarda”.
Os principais contrapontos foram que se colocasse um ponto final na ação de recolhimento pela polícia dos meninos que vivem ou que estão desacompanhados nas ruas da cidade (arrastão), em qualquer horário do dia, e que se implantassem novas abordagens e intervenções de cunho eminentemente preventivo e de caráter sócio-pedagógico.
Ficou bem claro nas discussões que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com duas décadas completas, representa o marco na tentativa de construir nas práticas sociais, a concepção de que os jovens são sujeitos de direitos.
Devemos lembrar que o ECA foi a primeira lei democrática aprovada após a ditadura militar e que se caracterizou por provocar profundo impacto “civilizatório”, por conter uma enorme abrangência humanista e por ser a alavanca de dignificação da vida de crianças e adolescentes no Brasil. Ferramenta coletiva de resgate de uma longa dívida social para com nossos meninos.
Por essa razão, uma linha divisória de atuação foi traçada pela atual legislação. Profissionalizaram-se os atendimentos e abandonaram o amadorismo, o assistencialismo, a caridade, o arbítrio e a politicagem. Para tanto, o controle da delinqüência juvenil e o controle do atendimento social de nossos jovens passaram a ter atores diferentes e intervenções próprias.
Ao conselho tutelar, o papel insubstituível de atender as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, ou seja, aquelas que tiverem seus direitos humanos ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, ou por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável e, ainda, em razão de sua conduta.
À polícia, a atribuição de intervir somente quando a conduta da criança ou do adolescente configurar a prática de crime ou contravenção penal (ato infracional).
Por conseguinte, quebrou-se o modelo até então vigente. Romperam-se as amarras de uma ideologia fundada na assistência, na vigilância e na repressão, que havia estruturado o Código de Menores de 1979 (situação irregular), para ingressarmos numa revolucionária doutrina de natureza “garantista” e “responsabilizante” (proteção integral).
Cunhou-se uma nova página no direito da criança. A cultura menorista, que autorizava a intervenção policial no sentido de retirar das ruas os meninos que ali sobreviviam e que seus atendimentos fossem feitos pelo juiz de menores fazem, agora, parte da história.
Construiu-se um novo paradigma. Optou-se em “desjudicializar” o atendimento social das crianças e adolescentes vulneráveis transferindo-o para uma nova estrutura – o conselho tutelar.
Findava-se o controle judicial da pobreza e de outras mazelas sociais envolvendo crianças e adolescentes. As figuras do juiz e do delegado perderam parcela de poder para novos atores, os educadores de rua e os conselheiros tutelares.
Assim, o ECA revolucionou ao estabelecer um modelo de pensar e de agir diferente do adotado pelo antigo Código de Menores. Por isto, podemos afirmar que a nova lei ainda está formando novos consensos culturais, tornando compreensivo encontrarmos ainda no cenário nacional atores do sistema judicial atuando com conceitos e praxes construídos na cultura menorista (efeito paralisante do antigo paradigma).
Mesmo com uma nova lei progressista em vigor, segmentos da sociedade que exercem parcela de poder ainda não se desvincularam das representações conservadoras do antigo modelo de cunho repressivo-preventivo (punir para depois educar).
O encerramento em nossa cidade dos programas sociais que atendiam a demanda de meninos de/na rua (rede social), somado a falta dos educadores sociais de rua (técnicos preparados para abordagem e estudo de caso) e de um conselho tutelar estruturado e composto por conselheiros treinados e capacitados à luz da doutrina sócio-jurídica da proteção integral, torna compreensivo, porém inaceitável, que juiz e delegado da infância e da juventude queiram ocupar, com as melhores intenções, o vácuo de poder deixado pelos programas sociais e, especialmente, pela gritante inoperância do conselho tutelar.
Está na hora da sociedade roraimense mobilizar-se na perspectiva de que não só ela, mas também a família e o Poder Público respeitem os direitos humanos de seus jovens, libertando-os das categorias de criança quando problema ou de adolescente quando delinqüente, como também cobrar a retomada dos programas sociais do passado e a ampliação dos atuais e, especialmente, a estruturação de nosso conselho tutelar.
Este será, sem dúvida alguma, o grande pacto pela infância a ser firmado pela sociedade civil organizada e o Pode Público, a fim de assegurar as crianças e adolescentes de Boa Vista o direito à cidadania.
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Professor de direito da criança e do adolescente na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual;
Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima;
Prêmio das Nações Unidas/Unicef 1999; e
Doutorando em direito pela Universidad Nacional Lomas de Zamora na Argentina.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, na coluna Opinião, do dia 18.04.2011, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=107197);
A lógica do controle formal dos menores de rua no século XIX.
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
O tema de hoje é bastante provocador, pois entender a lógica do primeiro modelo legal para o controle de menores de rua no Brasil faz-nos remontar ao século XIX. Esta viagem no tempo facilita-nos compreender o porquê de acreditarmos ainda hoje que este controle deva ocorrer pelo aparelho repressor do Estado e não por meio de ações sociais de entidades governamentais e não-governamentais ou ainda por ações conjuntas entre estas.
A abordagem de tal temática foi provocada pelo professor Jaci Guilherme Vieira , durante nossos encontros na UFRR, antes de suas reflexivas aulas de história do Brasil III, cujo conteúdo abrangia o final do Segundo Reinado a República Velha.
Mediante um recorte temporal no processo histórico brasileiro apresentamos uma breve análise sobre alguns fatos ocorridos durante o século XIX que ao nosso sentir contribuíram para o desenvolvimento de uma mentalidade repressora aos menores de rua. Convidamos nosso leitor a refletir sobre o paradigma criado neste período.
A construção desta mentalidade foi um processo que se iniciou com o término da euforia da mineração no século XVIII, passou pela chegada de numerosas famílias imigrantes jovens a partir de 1870 e pela abolição da escravidão em 1888, bem como pelo surgimento da indústria. Estes fatos históricos colaboraram para o crescimento urbano dos principais centros do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Porto Alegre e outros.
Como conseqüência crianças encheram as ruas no século XIX. Jovens negros, filhos de imigrantes e de trabalhadores ligados à indústria e ao comércio perambulavam pelas ruas, vivendo de expedientes muitas vezes contrários aos nossos atuais “bicos”. Viviam de pedir esmolas e de pequenos delitos contra o patrimônio. Eram menores abandonados e/ou infratores.
As pesquisadoras Irene Rizzini e Irma Rizzini apontam que as Companhias dos Arsenais de Guerra e de Aprendizes Marinheiros, durante o governo imperial de D. Pedro II, recebiam a primeira, meninos dos colégios de órfãos e das casas de educandos, enquanto a segunda, meninos recolhidos nas ruas pelas polícias das capitais brasileiras.
O professor Álvaro Pereira do Nascimento destaca que entre 1840 a 1888, as Companhias de Aprendizes Marinheiros forneceram 8.586 menores para o serviço de navios de guerra, contra 6.271 homens recrutados à força e 460 voluntários. Analisando estes dados, percebe-se que as Companhias durante o período imperial tiveram importante participação na “limpeza” das ruas das capitais brasileiras.
Já na fase da República Velha foi o trabalho infanto-juvenil o espelho fiel do baixo padrão de vida da família operária, pautado em salários insignificantes, e em índices de custo de vida extremamente elevados, conforme dizeres da historiadora Mary Del Priore .
A infância pobre que vivia pelas ruas durante a República Velha também era alvo de uma mentalidade repressora, ou seja, o Estado brasileiro intervia no espaço social por meio do seu aparelho repressor – a polícia. Segundo estudos de Irma Rizzini era a polícia que agia no combate a causa da desordem física e moral e pela ordenação desta sob uma nova ordem.
Surgem então os pivettes, termo francês que designava os jovens envolvidos com infrações como vadiagem, pequenos furtos, desordens, estupros e outros delitos. Assim, no início do período de industrialização do país, os menores de rua, genericamente apelidados de pivettes, foram vistos como o perigo das ruas e considerados “vagabundos”.
Aqui também não havia distinção entre menores abandonados e menores infratores. Todos eram menores de rua. O tratamento dispensado era o mesmo – natureza repressora com a intervenção policial. Antônio Carlos Gomes da Costa afirma que da chegada dos colonizadores até o início do século XX não há registro na estrutura do Estado da presença de ações que possam ser caracterizadas como política social.
Esta lógica refletiu-se nos documentos jurídicos produzidos nesta época. Estes incorporaram o chamado caráter penal indiferenciado até o século XX, quando foi adotada outra lógica, a de caráter tutelar. Legalizava-se a intervenção policial/repressora do Poder Público às questões dos menores de rua. Esta mentalidade foi definitivamente integrada ao aparelho ideológico do Estado.
Dessa forma, no plano legal, foram as Ordenações Filipinas que no início do século XIX inauguraram o controle formal dos menores de rua ao estabelecer a responsabilidade penal aos vinte e um anos. Determinava a mencionada legislação que a partir dos sete anos de idade o menor poderia ser sancionado penalmente. Influência do Direito Canônico, para o qual sete anos era a idade da razão.
Então, aos menores compreendidos na faixa etária de sete a dezessete anos completos, mesmo que o crime cometido merecesse pena de morte, as Ordenações não a autorizava, porém ficavam ao arbítrio do julgador dar-lhes outra menor pena. Já entre dezessete e vinte anos, a legislação autorizava ao julgador condená-lo à pena de morte ou diminuir sua pena, conforme tivesse sido cometido o delito, as suas circunstâncias e a pessoa do menor, além do grau de malicia deste.
Obedecendo a Constituição Imperial, o Brasil aprovou em 1830 o seu primeiro Código Criminal que manteve o controle formal sobre os menores de rua e adotou o sistema biopsicológico para punição de crianças entre sete e quatorze anos que tivessem obrado com “discernimento”. Estes menores eram recolhidos às casas de correção pelo prazo que ao juiz parecesse e não poderia exceder a idade de dezessete anos.
Segundo Tânia Pereira da Silva , o que organizava este código era a “teoria de ação com discernimento” que imputava responsabilidade penal ao menor em função de uma pesquisa da sua consciência em relação à prática da ação criminosa.
Contudo o Código Penal Republicano de 1890 determinava não ser criminoso o menor de 9 anos completos. Manteve o mesmo critério do código anterior, pois o maior de 9 e menor de 14 anos estava submetido a avaliação do magistrado sobre a sua aptidão para distinguir o bem do mal, o reconhecimento de possuir ele relativa lucidez para orientar-se em face das alternativas do justo e do injusto, da moralidade e da imoralidade, do lícito e do ilícito e, assim, receber uma pena.
Dessa forma, os menores que agissem com “discernimento” na prática de crimes e caso fossem condenados à reclusão, deveriam cumpri-la em estabelecimentos disciplinares. Ocorre que, embora a legislação penal cogitasse de prisões especiais para as crianças e adolescentes, estas não foram criadas, ao contrário, o governo instalou colônias correcionais para adultos e menores. A conseqüência disto foi que os jovens passaram a conviver nas mesmas celas com criminosos adultos. Dava-se início as escolas do crime.
Em síntese, contra os menores pobres ou abandonados de rua a ação repressora do Estado ocorria da mesma forma que para os menores infratores, ou seja, por meio de suas delegacias de polícia, que tinham poderes para identificar, recolher, encaminhar e até mesmo desligá-los das instituições. Havia uma ausência de método científico no atendimento ao menor.
Portanto, o modelo de atendimento aos menores de rua no século XIX, de mentalidade repressora, firma as bases de mitos conservadores que nos influenciam até hoje. Não é a toa que ao discutirmos as questões que envolvem menores de rua, ainda escutamos vozes que os confundem com menores infratores, misturando pobreza com delinqüência, o que fazem acreditar na ação policial/repressora como solução para essas duas categorias distintas de menores.
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Professor de direito da criança na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual da Amazônia;
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima;
Foi presidente do Tribunal de Justiça de Roraima 2005/07;
Formado pela Escola Superior de Guerra no Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia/2007; Acadêmico do 3º ano do curso de bacharelado/licenciatura em História pela UFRR.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, de 05.10.2011, na coluna Opinião, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/Noticia_Impressa.php?id=117204);
A culpabilização da família pelo estado de abandono do menor.
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
No artigo da semana passada, onde abordamos “a lógica do controle formal dos menores de rua no século XIX”, constatamos que estes jovens eram vistos como portadores do germe da criminalidade e únicos responsáveis pelos seus atos, ideologia presente nas legislações que vigoraram naquele período, valendo citar as Ordenações Filipinas, o primeiro Código Criminal Brasileiro (1830) e o Código Penal Republicano (1890).
Como visto, estas leis desenvolveram a “teoria de ação com discernimento”, onde o magistrado estava autorizado a avaliar a consciência da criança em relação à prática da ação criminosa, ou seja, de examinar se esta tinha condições de entender o caráter lícito e ilícito, justo e injusto, moral e imoral de sua conduta, para aplicar-lhe uma pena.
O paradigma do controle formal sobre os menores pobres ou abandonados desenvolvido no século XIX, não só refletiu como legalizou a mentalidade repressora e policialesca do Estado, que atuava da mesma maneira que para os menores infratores, pois não os diferenciavam.
O nosso recorte temporal desta semana será o início do século XX, onde a sociedade urbana ainda via o problema da infância pobre e desamparada como caso de polícia e repressão e não como uma questão de assistência e proteção. A visão sobre a criança pobre e desvalida era relacionada com a idéia de delinqüência e criminalidade e não como questão social, merecendo o encaminhamento desta para asilamento ou internação.
Ocorre que este modelo, no início do século passado, não conseguiu atender ao controle dos menores de rua, pois não atacava a causa, ou melhor, as raízes do problema. Continuava a existir um grande número de menores vivendo à vontade nas ruas. Crianças e adolescentes se avolumavam no cotidiano dos espaços públicos, gerando a possibilidade de se “contaminarem no vício”. Não possuíam ocupação e estavam sujeitas à má influência.
Tal situação era reflexo da ruptura no sistema pré-capitalista de produção. A economia cafeeira substituiu a mão-de-obra escrava por uma nova relação de trabalho – assalariada, com a vinda dos imigrantes estrangeiros.
Grandes transformações ocorreram nas principais cidades. A taxa populacional urbana aumentou consideravelmente em virtude da expansão industrial e da urbanização. Este crescimento provocou a formação de um extenso segmento proletário em condições de miséria, sem que o Estado tivesse um serviço social organizado.
Assim, em 1902, São Paulo preocupado com o enorme número de jovens perambulando por sua capital, criou procedimentos legais na ação contra a criminalidade e vadiagem infantil e juvenil, fundando instituições específicas destinadas a acolher a criança infratora. Segundo o pesquisador L. R. Netto foram criados o Instituto Disciplinar para crianças de 9 a 14 anos e a Colônia Correcional para jovens de 14 a 21 anos.
Esclarece o citado pesquisador que para o Instituto Disciplinar eram enviados os jovens infratores e abandonados e para a Colônia Correcional somente os jovens infratores, condenados especialmente pelo crime de vadiagem. Os menores de 9 anos, a princípio tratados como crianças abandonadas, eram enviados às instituições de assistência.
Cabe registrar que neste período as instituições integrantes da estrutura do Poder Público que abrigavam os menores de rua da categoria abandonados estavam vinculadas à polícia. Como exemplo, podemos citar o asilo de menores abandonados, criado no Rio de Janeiro, em 1907, pelo chefe da polícia carioca Alfredo Pinto Vieira de Mello, para abrigar crianças recolhidas nas ruas . Esta unidade foi administrada pela polícia até 1915, quando integrou-se a um patronato de menores (entidade particular), passando a se chamar Casa de Preservação, devido a má gestão.
Segundo pesquisa de Ataulpho de Paiva sobre os asilos de menores, publicada em 1916 , as penas disciplinares infligidas aos menores nestas entidades eram “excessivas e desumanas”.
Dessa forma, o Estado começou gradualmente a se apropriar da questão da assistência. Todavia não apresentou uma mudança de enfoque do problema: continuou a considerar os indivíduos como causa da própria condição de pobreza e desamparo, mascarando a sua verdadeira origem, uma forma de organização social que separa os homens em classes nos dizeres da professora Elisabeth Piemonte Constantino .
Os juristas brasileiros das primeiras décadas do século XX ao sofrerem influência das transformações doutrinárias e jurisprudenciais internacionais, buscaram na legislação européia e norte-americana não só os exemplos do que deveriam ser as leis como os modelos de instituições para menores.
Com efeito, ocorreram debates que se centraram na identificação e no estudo das categorias necessitadas de proteção e reforma, com a finalidade de melhor aparelhamento institucional para salvar a infância. As discussões foram subsidiadas pelas resoluções dos congressos internacionais sobre assistência social, médico-higienista e jurídica.
Neste contexto, os menores de rua passaram a ser considerados como afetados por circunstâncias individuais ou sociais, como a desagregação familiar e o contato com o vício, os quais presumivelmente os levariam ao crime. Mudava-se o eixo da causa do problema. Culpava-se a família pela situação da criança. Este novo olhar serviu aos interesses do Estado.
Juntamente com as representações negativas sobre as famílias que tinham seus filhos nas ruas nasceu a construção da assistência à infância no Brasil, que para as pesquisadoras Irene Rizzini e Irma Rizzini a idéia de proteção à infância era antes de tudo proteção contra à família.
Complementam as pesquisadoras que foi na década de 1920, a partir da constituição de um aparato oficial de proteção e assistência a infância que as famílias das classes populares se tornaram alvo de estudos e formulação de teorias a respeito da incapacidade de seus membros em educar e disciplinar os filhos.
O Poder Público passava enxergar na criança a possibilidade de assegurar o futuro da sociedade capitalista. Assim, para se evitar o “mal” que as crianças abandonadas e marginalizadas representaram ao estarem expostas nas ruas, justificou-se a correção e a prevenção, fundadas em ações educadoras/disciplinadoras.
Portanto, as crianças abandonadas e marginalizadas foram retiradas das ruas e recolhidas em instituições para formação do caráter e da construção da nação republicana. Hodiernamente este pensamento ainda permeia os debates referentes aos menores de rua, onde ecoam propostas de recolhimento pela polícia das crianças pobres e desamparadas dos logradouros públicos (arrastões, toque de recolher, etc) com seu conseqüente encaminhamento para abrigos ou instituições similares, para que recebam educação e disciplina.
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Professor de direito da criança na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual da Amazônia;
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima;
Foi presidente do Tribunal Regional de Roraima 2003/05;
Pós-graduado em Direito de Família pela Universidade Gama Filho/1987; e
Acadêmico do 3º ano do curso de bacharelado/licenciatura em História pela UFRR.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, de 17.10.2011, na coluna Opinião, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/Noticia_Impressa.php?id=117842);
O caso Marie Anne e o reconhecimento de direitos da infância nos tribunais.
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
Na semana que antecedeu a publicação deste artigo recebi diversos e-mails, especificamente de acadêmicos dos cursos de direito e de serviço social das universidades locais, os quais me sugeriam que no próximo tema abordasse o precedente do reconhecimento de direitos da infância nos tribunais.
Gostei da sugestão, até porque a investigação de tal problema se encontra no mesmo recorte temporal que trabalhei nos dois últimos artigos, além de terem em seus conteúdos uma ligação bastante estreita.
Diferenciam as pesquisas apenas quanto ao elemento espacial, pois nas duas anteriores trabalhamos as mentalidades sobre o enfrentamento das questões dos menores no Brasil durante o século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, enquanto neste a proposta terá seu locus nos Estados Unidos de 1875.
Assim, aderi à inquietação dos universitários e aceitei o desafio. Logo comecei a pesquisar. Reconheço que a investigação realizada para encontrar a resposta ao questionamento sugerido não foi fácil, pois provocou um profundo diálogo entre o direito e a história. As fontes bibliográficas no Brasil são escassas sobre a matéria.
Os historiadores do direito apontam que o fato histórico que se tornou no mundo precedente da luta pelo reconhecimento de direitos da infância nos tribunais foi o chamado caso Marie Anne.
O episódio chegou ao conhecimento público ao final do século XIX, precisamente no ano de 1875, em Nova Iorque, devido a sua grande repercussão na imprensa e na opinião pública, onde Marie Anne, uma menininha de apenas nove anos sofria intensos maus-tratos impostos pelos seus genitores.
Na época os Estados Unidos não possuía uma legislação especial para proteção dos menores e os pais se sentiam donos dos filhos e utilizavam todas as formas de castigos físicos para “educá-los”.
Esta ideologia estava refletida no Código de Napoleão, nos primeiros anos do século XIX, que fixou o marco do direito civil, inspirando o Código Civil brasileiro de 1916 . Segundo João Batista Costa Saraiva , do ponto de vista da responsabilidade civil por atos praticados por menores, do Código Napoleônico, passando pelo revogado Código Civil pátrio ao vigente Código Civil brasileiro , pode-se afirmar que a legislação civil não estabeleceu muita diferença entre uma criança e um cachorro.
Estes Códigos responsabilizam civilmente o dono do animal pelo dano causado por este, como igualmente responsabilizam os genitores pelos atos do filho menor que esteja sob sua autoridade e em sua companhia . Esta responsabilidade dos pais é decorrente dos deveres do poder familiar, independentemente do filho ser ou não imputável nas lições de Maria Helena Diniz .
Logo, em ambas as hipóteses a responsabilidade civil é do dono, pois desde o Código Civil francês até os tempos atuais pouca distinção se fez entre um menor e um cachorro. Em outras palavras, a criança a partir do século XIX foi considerada como uma “coisa”, portanto, de propriedade de seus genitores.
Compreender esta idéia é entender o porquê que algumas pessoas até hoje utilizam o castigo físico como método educativo. As crianças, como os animais, eram propriedade de seus donos, ou seja, de seus pais, e assim aquelas poderiam ser “educadas” da maneira que estes entendessem conveniente.
No caso de Marie Anne a situação se tornou insuportável e o caso foi levado ao conhecimento da Justiça americana. A instituição que ingressou em juízo para defesa e proteção dos direitos da menina foi a Sociedade para a Proteção dos Animais de Nova Iorque.
Interessante registrar que na época não havia uma entidade preocupada com o direito dos menores, porém já existia uma entidade protetora dos animais. A legitimidade para agir da entidade foi questionada, contudo os advogados argumentaram que se a menina fosse um cachorro, um gato ou um cavalo, que estivesse submetido àquele tratamento, a Sociedade para a Proteção dos Animais teria legitimidade, portanto, com mais razão por se tratar Marie Anne de um ser humano.
A Sociedade para a Proteção dos Animais sagrou-se vencedora na causa e conseguiu o afastamento de Marie Anne de seus agressores, ou seja, sua retirada da guarda de seus pais pelas autoridades judiciais.
Consagrava-se a primeira intervenção do Estado no caso de uma criança vítima de maus-tratos por parte de seus genitores e também proporcionava um repensar acerca dos castigos físicos impostos pelos pais aos seus filhos, especialmente sob a justificativa de “educá-los”.
Neste contexto, a criança, que era tratada como “coisa”, passou no final do século XIX a reclamar ao menos a condição de objeto de proteção do Poder Público. Construía-se uma nova ideologia de caráter tutelar. Estava nascendo o direito do menor e virava-se a página da história quanto ao tratamento dispensado aos menores de conteúdo eminentemente retribucionista e de base penal. Terminava a primeira fase da trajetória do direito da criança e do adolescente denominada por Emílio Garcia Mendes de etapa de caráter penal indiferenciado.
Marcel Esquivel Hoppe esclarece que após este caso, membros da Sociedade Protetora dos Animais constituíram a primeira liga de proteção à infância, a Save the Children of World, que acabou se tornando um organismo internacional.
Poucos anos depois, em 1899, no Estado americano de Illinois, instalava-se o primeiro tribunal de menores do mundo. Em decorrência dessa experiência, os Estados Unidos acabou influenciando diversos países europeus e americanos, que aderiram à criação daquele tribunal especializado. Neste momento histórico, o Estado passou a intervir nas questões dos menores por meio da Justiça. O mundo adulto mudava seu olhar. Quebrava-se um paradigma. Assunto que certamente merece ser explorado em outros artigos.
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Professor de direito da criança na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual da Amazônia;
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima;
Foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima 2005/07;
Pós-graduado em Violência doméstica contra criança pela USP/2001;
Acadêmico do 3º ano do curso de bacharelado/licenciatura em História pela UFRR.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, de 26.10.2011, na coluna Opinião, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/Noticia_Impressa.php?id=118374);
A idéia das crianças serem o futuro da nação.
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
O início da República Velha ficou marcado pelo surgimento no Brasil das primeiras idéias sobre a normatização de um direito do menor. Até então, a linha de pensamento estava baseada na doutrina do direito penal, concentrada nos Códigos Criminais de 1830 e 1890. Era a etapa do caráter penal indiferenciado, conforme classificou Emílio Garcia Mendes . Portanto, o aparelho ideológico do Estado fundava suas ações no binômio repressão/polícia para atuar nas questões da infância.
Contudo na virada do século XIX para o XX a sociedade atribuiu grande importância à infância abandonada e pobre, como a que praticava delitos, pois se revelava como um problema social e contrário ao projeto de construção de nação. Havia um consenso geral de que a infância estava em perigo. Denunciava-se a situação da infância nas ruas, nas famílias ou nos asilos.
Neste momento histórico, o significado social da infância estava circunscrito na perspectiva de moldá-la de acordo com o projeto que conduziria o Brasil ao seu ideal de nação, segundo lições da pesquisadora Irene Rizzini . Esse ideal era descrito como o de transformar o Brasil numa nação culta, moderna e civilizada, de acordo com os modelos de civilização da época tipificados pelas principais cidades européias e norte-americanas, entre as quais se destacavam Paris, Londres e Nova Iorque.
Então, salvar as crianças era salvar o país – nascia à idéia das crianças serem o futuro da nação. A elite intelectual e política da época apropriaram-se deste discurso. José Lopes da Silva Trovão, em 1896, ao falar no Senado, disse que “temos uma patria a reconstruir, uma nação a firmar, um povo a fazer… e para emprehender essa tarefa, que elemento mais ductil e moldavel a trabalhar do que a infancia?!…”. “São chegados os tempos”, preconizava o Senador, “de prepararmos na infancia a cellula de uma mocidade melhor, a genesis de uma humanidade mais perfeita.“
Aqui o projeto político ficava bem claro! A finalidade era transformar a criança pobre em elemento útil e produtivo para a nação. Justificava-se o combate à infância ociosa. Falando de forma franca e direta: – era preciso proteger a criança como forma de defesa da própria sociedade e do desenvolvimento capitalista.
Dessa forma, no apagar das luzes do século XIX, foram importadas novas teorias e criadas novas técnicas que serviram de subsídio para a criação de leis e instituições que
integraram um projeto de assistência social nos dizeres de Tânia da Silva Pereira e para quem este projeto ainda não estava organizado em termos de uma política social a ser seguida em nível nacional.
A ciência, em especial a medicina, a psiquiatria, a pedagogia e o direito contribuiu para a formação de uma nova mentalidade de atendimento ao menor. O mundo acadêmico desenvolveu um novo olhar sobre a questão da infância pobre e abandonada e também quanto aos menores delinqüentes.
Para os citados campos do conhecimento a infância deveria merecer atenção e cuidados. Atribuía-se as condições de extrema pobreza, baixa moralidade, a ausência de uma educação adequada e até doenças de seus genitores, a produção de uma infância potencialmente perigosa e moralmente abandonada.
Entendiam os especialistas que o Estado deveria reeducar o menor por meio de educação física, moral, instrucional e profissional, além de um tratamento de assistência. Neste momento a mentalidade repressora começa a ceder espaço para um novo paradigma de assistência à infância: um modelo calcado na racionalidade científica.
A elite chamada intelectual e representada principalmente por médicos, jornalistas, engenheiros, juízes e advogados, aderiu à denominada “causa da infância”. Este grupo atuava em sociedades filantrópicas e exercia grande influência na arena política, na imprensa e nas universidades.
Assim, as duas primeiras décadas do século XX foram importantes para a constituição do direito do menor no Brasil. Válter Kenji Ishida , ao trabalhar o tema, indica o citado senador José Lopes da Silva Trovão como sendo no país o autor do primeiro projeto de lei sobre menores.
Lopes Trovão era médico e jornalista e já havia sido deputado federal, por dois mandatos, entre 1891 e 1895. Havia lutado contra a estrutura do Império, sendo um dos signatários do Manifesto Republicano de 1870. Exerceu seu mandato no Senado de 1895 a 1902 . Era considerado um republicano ativo e ardente abolicionista.
Em seguida, em 21.10.1906, o jornalista e deputado federal Alcindo Guanabara elaborou projeto de lei sobre menores e outro, como senador, em 21.08.1917, provocando, então, duas discussões sobre a elaboração de uma lei sobre a matéria, conforme dizeres de Francisco Pereira de Bulhões Carvalho .
No governo de Epitácio Pessoa (de 1919 a 1922), o ministro da justiça Alfredo Pinto (de 1919 a 1921) convidou José Cândido de Albuquerque Mello Mattos para reestruturar o projeto de Alcindo Guanabara e apresentar um substitutivo.
Assim, a primeira legislação no Brasil sobre menores foi aprovada em 05.01.1921, era a Lei nº 4.242, que autorizava o Poder Público a organizar o serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinqüente. Incluía o substitutivo de Mello Mattos. Esta Lei permitiu que no orçamento da União houvesse a previsão de gastos destinados a recuperar os menores.
Nesta lei ficava claro que o governo não queria priorizar investimento na educação ao acesso de todos, pois não era de interesse ao grupo de elite no poder. Optava-se por uma política excludente. A população não poderia ter consciência de seus direitos, uma vez que dificultaria o exercício arbitrário e violento do controle sobre a maioria que se exercia a época.
Portanto, a idéia de que na criança estava o futuro da nação, uma “verdade” construída pela elite intelectual e apropriada pelo aparelho ideológico do Estado, sustentou ações assistenciais no sentido de moldar a infância para manter a massa populacional arregimentada como nos velhos tempos.
O governo concebia um novo paradigma, fundado num sistema que legitimava a intervenção na vida das famílias pobres, ditando-se medidas de vigilância e controle.
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Professor de direito da criança na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual da Amazônia;
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima;
Foi vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima 2009/11;
MBA em Política, estratégia e gestão pública pela UFRJ/2007;
Acadêmico do 3º ano do curso de bacharelado/licenciatura em História pela UFRR.
– Artigo publicado no Jornal Folha de Boa Vista, de 07.11.2011, na coluna Opinião, disponível no site (http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=119011);
O “menor” como produto de uma família desorganizada.
Mauro Campello*
maurocampello@tjrr.jus.br
Todo homem, ao nascer, integra-se a uma entidade familiar, seja pela constituição de vínculos afetivos, seja por força legal, e a esta estará ligado durante a sua existência, mesmo se rejeitado ou constituindo nova família. Esta instituição representa o núcleo fundamental, a base mais sólida em que repousa toda a organização social nos dizeres do saudoso jurista Washington de Barros Monteiro .
À família organizada dar-se-á papel de fundamental importância social, visto que, a vida em família é a primeira forma de sociabilidade do ser humano. Será através dela que o bicho homem terá contato com as normas sociais que deverão ser aprendidas e apreendidas.
Mas o que devemos compreender como família organizada?
Para o senso comum será a família onde tudo está certo e arrumado, os pais cumprem seus deveres não só entre si, nas qualidades de marido e esposa, companheiro e companheira, mas também para com os filhos, os quais estão sendo educados, vão ao colégio, estão bem alimentados, saudáveis, limpos e recebendo afeto.
Ocorre que por trás da imagem da família harmoniosa esconde-se uma ideologia que opera em defesa e na reprodução do sistema capitalista. Neste sistema diz-se que o modelo de família organizada é aquele quando pai e mãe são casados, vivem sob o mesmo teto, pagam os impostos (colaboram com o bem-estar da sociedade), conseguem de forma lícita o sustento para os filhos e propiciam a educação destes pelo labor.
É por meio do trabalho que as pessoas conseguem rendimentos para casar e constituir outras famílias. Pelo labor produzem riquezas e com elas realizam suas relações sociais e assim as famílias vão se solidificando e engendrando as formas de sua reprodução, segundo o cientista social Edson Passeti .
Na sociedade capitalista as relações estão baseadas na propriedade e a vida nesta se realiza através da venda da força de trabalho num mercado. O trabalhador recebe o pagamento de um tanto pelo trabalho dispendido, porém a outra parte, a mais-valia, será absorvida em investimentos na propriedade do capitalista. Isto porque o operário não recebe o equivalente ao que produziu. Historicamente, o capitalismo caracteriza-se pelo acúmulo de riquezas.
Estudos antropológicos nos revelam que as famílias indígenas são diferentes das nossas, não por terem sido erroneamente classificadas como selvagens e civilizadas, respectivamente, mas pelo aspecto do trabalho. Nas sociedades indígenas o trabalho se baseia em outros princípios e, assim sendo, as crianças-índias são preparadas para a vida numa sociedade que busca a reciprocidade, constituída na relação dar-receber-dar, portanto inexistindo a idéia de família organizada.
A citação destes estudos tem o propósito de demonstrar a forte influência da vida capitalista na construção da idéia de família organizada pertencente a nossa sociedade. Esta família foi engendrada para reproduzir as relações de compra e venda da mão-de-obra para a produção da riqueza social (produção total da sociedade). Em síntese, quando se fala em família organizada estamos falando também em valores transmitidos pelo trabalho.
A mentalidade do modelo de família organizada introjetada na sociedade capitalista leva aos seus membros supor que a vida é vivida em dois lados, o certo e o errado. Então, o que seria certo na relação pais/filhos? Respeitar os pais. E na relação professor/aluno? Respeitar o professor. E na relação sociedade/menor? Respeitar os mais velhos.
Em síntese, o modelo de família organizada constrói a idéia de que o certo é ouvir e tentar seguir os passos daqueles que se consideram realizados. Já a vida a ser considerada como errada será justamente o contrário. Edson Passeti conclui que esta dicotomia permite que as pessoas acabem pensando que a vida é um modelo e, por isso, acabem delirando.
Todavia o ponto mais importante deste ensaio se prende em compreender o significado do paradigma da família desorganizada, ou seja, daquela que não é capaz de passar as noções elementares de sociabilidade, fundadas no respeito à autoridade familiar, aos seus filhos. Isto acontece, porque segundo esta lógica, a família inexiste.
Ainda recorrendo-se ao mesmo cientista social , este cita como exemplo do produto de uma família desorganizada a criança filha de mãe solteira, fruto de relações extraconjugais ou cujos pais não têm condições de obter seus meios de subsistência pelo trabalho e, por conseguinte, habitam a chamada “periferia” das cidades, freqüentando esporadicamente a escola, convivendo com garotos e garotas nas ruas.
Como resultado a criança estará disponível para conviver com “maus elementos”, integrar galeras ou gangues, praticar atos infracionais pela cidade, ficar ociosa pelas ruas, drogar-se e prostituir-se, ou melhor, ficar vulnerável as situações de risco.
Quando os filhos de famílias desorganizadas conseguem superar as infelicidades de terem nascidos nestas e vencem na vida pelo trabalho, serão ditos como exceções, pois conseguiram a vitória por força de vontade própria ao seguirem o “bom caminho”. Não é à toa ouvirmos que estes vencedores sempre foram meninos obedientes, não gostavam de rua, obedeciam à professora, agora são homens de verdade.
No entanto, a realidade é outra. A grande maioria dos filhos de famílias desorganizadas será chamada de “menor”. Receberá um adjetivo que irá identificá-los em sua comunidade. Assim, estes filhos serão conhecidos como “menores” delinqüentes, prostitutas, maconheiros, trombadinhas, carentes, vagabundos, dentre outros. Trata-se de um rótulo que irá estigmatizá-los para sempre.
Nos meios de comunicação de nossa cidade sentimos o poder dessa rotulação. Ainda é comum o emprego da palavra “menor” nas manchetes dos jornais ou nas chamadas dos noticiários televisivos para identificar o jovem filho de uma família desorganizada como “menor” integrante de galera é morto, “menores” brigam na escola, “menor” assalta taxista, “menor” agride professor, e outros, diferentemente do tratamento quando se refere ao filho de uma família organizada, onde a palavra “menor” é substituída por outras expressões como criança tem negada matrícula na escola, adolescente não recebe atendimento hospitalar, menina é abusada sexualmente, jovem é atropelado e etc.
Logo, a família será definida pela forma de organização que a mesma irá tomar como fonte de reprodução da força de trabalho. Ela não se constitui de forma natural. Tanto é verdade que as relações sexuais entre homens e mulheres não fazem do homem marido e da mulher esposa, bem como para eventual prole, pois não os fazem pais e mães.
Com efeito, a imagem da família ideal que as pessoas possuem está vinculada aos valores que constituem suas vidas sob a forma dos paradigmas das famílias organizada e desorganizada. O importante é termos a consciência de que a reprodução pela família de um desses modelos tem como conseqüência – o destino de suas crianças e adolescentes.
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Professor de direito da criança na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual da Amazônia;
Desembargador ex-presidente do Tribunal de Justiça de Roraima 2005/07;
Pós-graduado em Direito de Família pela Universidade Gama Filho 1987;
Acadêmico do 3º ano do curso de bacharelado/licenciatura em História pela UFRR.