A lógica do controle formal dos menores de rua no século XIX.

Mauro Campello*

O tema de hoje é bastante provocador, pois entender a lógica do primeiro modelo legal para o controle de menores de rua no Brasil faz-nos remontar ao século XIX. Esta viagem no tempo facilita-nos compreender o porquê de acreditarmos ainda hoje que este controle deva ocorrer pelo aparelho repressor do Estado e não por meio de ações sociais de entidades governamentais e não-governamentais ou ainda por ações conjuntas entre estas.
A abordagem de tal temática foi provocada pelo professor Jaci Guilherme Vieira , no semestre passado, durante nossos encontros na UFRR, antes de suas reflexivas aulas de história do Brasil III, cujo conteúdo abrangia o final do Segundo Reinado a República Velha.
Mediante um recorte temporal no processo histórico brasileiro apresentamos uma breve análise sobre alguns fatos ocorridos durante o século XIX que ao nosso sentir contribuíram para o desenvolvimento de uma mentalidade repressora aos menores de rua. Convidamos nosso leitor a refletir sobre o paradigma criado neste período.
A construção desta mentalidade foi um processo que se iniciou com o término da euforia da mineração no século XVIII, passou pela chegada de numerosas famílias imigrantes jovens a partir de 1870 e pela abolição da escravidão em 1888, bem como pelo surgimento da indústria. Estes fatos históricos colaboraram para o crescimento urbano dos principais centros do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Porto Alegre e outros.
Como conseqüência crianças encheram as ruas no século XIX. Jovens negros, filhos de imigrantes e de trabalhadores ligados à indústria e ao comércio perambulavam pelas ruas, vivendo de expedientes muitas vezes contrários aos nossos atuais “bicos”. Viviam de pedir esmolas e de pequenos delitos contra o patrimônio. Eram menores abandonados e/ou infratores.
As pesquisadoras Irene Rizzini e Irma Rizzini apontam que as Companhias dos Arsenais de Guerra e de Aprendizes Marinheiros, durante o governo imperial de D. Pedro II, recebiam a primeira, meninos dos colégios de órfãos e das casas de educandos, enquanto a segunda, meninos recolhidos nas ruas pelas polícias das capitais brasileiras.
O professor Álvaro Pereira do Nascimento destaca que entre 1840 a 1888, as Companhias de Aprendizes Marinheiros forneceram 8.586 menores para o serviço de navios de guerra, contra 6.271 homens recrutados à força e 460 voluntários. Analisando estes dados, percebe-se que as Companhias durante o período imperial tiveram importante participação na “limpeza” das ruas das capitais brasileiras.
Já na fase da República Velha foi o trabalho infanto-juvenil o espelho fiel do baixo padrão de vida da família operária, pautado em salários insignificantes, e em índices de custo de vida extremamente elevados, conforme dizeres da historiadora Mary Del Priore .
A infância pobre que vivia pelas ruas durante a República Velha também era alvo de uma mentalidade repressora, ou seja, o Estado brasileiro intervia no espaço social por meio do seu aparelho repressor – a polícia. Segundo estudos de Irma Rizzini era a polícia que agia no combate a causa da desordem física e moral e pela ordenação desta sob uma nova ordem.
Surgem então os pivettes, termo francês que designava os jovens envolvidos com infrações como vadiagem, pequenos furtos, desordens, estupros e outros delitos. Assim, no início do período de industrialização do país, os menores de rua, genericamente apelidados de pivettes, foram vistos como o perigo das ruas e considerados “vagabundos”.
Aqui também não havia distinção entre menores abandonados e menores infratores. Todos eram menores de rua. O tratamento dispensado era o mesmo – natureza repressora com a intervenção policial. Antônio Carlos Gomes da Costa afirma que da chegada dos colonizadores até o início do século XX não há registro na estrutura do Estado da presença de ações que possam ser caracterizadas como política social.
Esta lógica refletiu-se nos documentos jurídicos produzidos nesta época. Estes incorporaram o chamado caráter penal indiferenciado até o século XX, quando foi adotada outra lógica, a de caráter tutelar. Legalizava-se a intervenção policial/repressora do Poder Público às questões dos menores de rua. Esta mentalidade foi definitivamente integrada ao aparelho ideológico do Estado.
Dessa forma, no plano legal, foram as Ordenações Filipinas que no início do século XIX inauguraram o controle formal dos menores de rua ao estabelecer a responsabilidade penal aos vinte e um anos. Determinava a mencionada legislação que a partir dos sete anos de idade o menor poderia ser sancionado penalmente. Influência do Direito Canônico, para o qual sete anos era a idade da razão.
Então, aos menores compreendidos na faixa etária de sete a dezessete anos completos, mesmo que o crime cometido merecesse pena de morte, as Ordenações não a autorizava, porém ficavam ao arbítrio do julgador dar-lhes outra menor pena. Já entre dezessete e vinte anos, a legislação autorizava ao julgador condená-lo à pena de morte ou diminuir sua pena, conforme tivesse sido cometido o delito, as suas circunstâncias e a pessoa do menor, além do grau de malicia deste.
Obedecendo a Constituição Imperial, o Brasil aprovou em 1830 o seu primeiro Código Criminal que manteve o controle formal sobre os menores de rua e adotou o sistema biopsicológico para punição de crianças entre sete e quatorze anos que tivessem obrado com “discernimento”. Estes menores eram recolhidos às casas de correção pelo prazo que ao juiz parecesse e não poderia exceder a idade de dezessete anos.
Segundo Tânia Pereira da Silva , o que organizava este código era a “teoria de ação com discernimento” que imputava responsabilidade penal ao menor em função de uma pesquisa da sua consciência em relação à prática da ação criminosa.
Contudo o Código Penal Republicano de 1890 determinava não ser criminoso o menor de 9 anos completos. Manteve o mesmo critério do código anterior, pois o maior de 9 anos e menor de 14 anos estava submetido a avaliação do magistrado sobre a sua aptidão para distinguir o bem do mal, o reconhecimento de possuir ele relativa lucidez para orientar-se em face das alternativas do justo e do injusto, da moralidade e da imoralidade, do lícito e do ilícito e, assim, receber uma pena.
Dessa forma, os menores que agissem com “discernimento” na prática de crimes e caso fossem condenados à reclusão, deveriam cumpri-la em estabelecimentos disciplinares. Ocorre que, embora a legislação penal cogitasse de prisões especiais para as crianças e adolescentes, estas não foram criadas, ao contrário, o governo instalou colônias correcionais para adultos e menores. A conseqüência disto foi que os jovens passaram a conviver nas mesmas celas com criminosos adultos. Dava-se início as escolas do crime.
Em síntese, contra os menores pobres ou abandonados de rua a ação repressora do Estado ocorria da mesma forma que para os menores infratores, ou seja, por meio de suas delegacias de polícia, que tinham poderes para identificar, recolher, encaminhar e até mesmo desligá-los das instituições. Havia uma ausência de método científico no atendimento ao menor.
Portanto, o modelo de atendimento aos menores de rua no século XIX, de mentalidade repressora, firma as bases de mitos conservadores que nos influenciam até hoje. Não é a toa que ao discutirmos as questões que envolvem menores de rua, ainda escutamos vozes que os confundem com menores infratores, misturando pobreza com delinqüência, o que fazem acreditar na ação policial/repressora como solução para essas duas categorias distintas de menores.
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Professor de direito da criança na UFRR, UERR e Faculdade Estácio/Atual da Amazônia;
Desembargador ex-presidente do Tribunal de Justiça de Roraima 2005/07;
Formado pela Escola Superior de Guerra no Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia/2007;
Acadêmico do 3º ano do curso de bacharelado/licenciatura em História pela UFRR.