SERMÃO DO PADRE ANTONIO VIEIRA datado de 1655, tão atual.

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Este sermão, que hoje se prega na Misericórdia de Lisboa, e não se prega na Capela Real, parecia-me a mim que lá se havia de pregar, e não aqui. Daquela pauta havia de ser, e não desta. E por quê? Porque o texto em que se funda o mesmo sermão, todo pertence à majestade daquele lugar, e nada à piedade deste.

Querem saber os reis se os que provêem nos ofícios são ladrões ou não? Observem a regra de Cristo: Qui non intral per ostium, jur est et latro (14). A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o merecimento. E todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão, senão ladrão e ladrão:

Fur est latro. E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são.

Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação. E quem negocia não há mister outra prova: já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S. Jerônimo, a diferença de fur a latro.

Justiça Injusta

Coisa é certo maravilhosa ver a alguns tão introduzidos e tão entrados, não entrando pela porta nem podendo entrar por ela. Se entraram pelas janelas, como aqueles ladrões de que faz menção Joel: Per fenestras intrabunt quasi fur (15), grande desgraça é que, sendo as janelas feitas para entrar a luz e o ar, entrem por elas as trevas e os desares. Se entraram minando a casa do pai de famílias, como o ladrão da parábola de Cristo: Si sciret pater familias qua hora fur veniret, non sineret perfodi domum suam(16), ainda seria maior desgraça que o sono, ou letargo do dono da casa fosse tão pesado que, minando-se-lhe as paredes, não o espertassem os golpes. Mas o que excede toda a admiração é que haja quem, achando a porta fechada, empreenda entrar por cima dos telhados, e o consiga, e mais sem ter pés, nem mãos, quanto mais asas.