Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a democracia.

 

                   Em 1960, quando o exército francês massacrava os rebeldes que reivindicavam a libertação da Argélia, o grande humanista e filósofo Jean Paul Sartre concitou os soldados franceses a desobedecerem às ordens de seus comandantes. Em represália 10 mil veteranos do Exército francês marcharam numa passeata anti-independência aos gritos de “Atirem em Sartre”.

Nessa ocasião foi pedida a prisão de Sartre, acusado de traidor da pátria, ao que se opôs o Presidente Charles de Gaulle, declarando “Não se prende Voltaire”. O mesmo General de Gaulle, anos depois afirmaria que o Brasil não era um país sério. Ainda bem que ele não está mais vivo para assistir o atual cenário do país, rasgando sua Constituição para fazer de um ex-presidente um preso político. Estivesse vivo, talvez o ilustre mandatário francês repetisse a frase, mudando os personagens: “Não se prende um Mandela”.

Interessante que o notável filósofo sempre foi perseguido por sua defesa intransigente do proletariado. Essa bandeira é muito cara à elite burguesa que não aceita debater uma justa distribuição de rendas. Pressionado, Sartre respondeu que jamais combateria o proletariado, ao que alertou seu amigo Camus: “Você precisa partir. Se ficar, não tirarão apenas sua vida, mas também a sua honra. Vão leva-lo para um campo e você vai morrer. Mas vão dizer que você ainda está vivo, e usarão seu nome para pregar a resignação, a submissão e a traição, e as pessoas acreditarão neles”.

Qualquer semelhança é mera coincidência. A história nos revela que toda vez que houve relativização dos direitos fundamentais, o poder civil foi deslegitimado e as instituições democráticas fragilizadas. A Constituição não pode ser submetida ao clamor das eventuais maiorias ou ao sentimento de qualquer grupo, mas sim uma garantia dos direitos e liberdades individuais e inibir os abusos do Estado ou daqueles que agem em seu nome.

O Brasil já conhece, por experiência ainda recente, o que é viver em regime de exceção, onde a ordem jurídica ficou submetida ao humor e ao sabor do ditador de plantão. Mas agora, ainda que sob o manto de uma frágil democracia, o que se testemunha é a atuação arbitrária de agentes do Estado em nome da lei que tem sido utilizada como instrumento de opressão e perseguição do inimigo da ocasião. As intervenções pretorianas seletivas têm protagonizado graves ofensas à Constituição, e isso se reflete na nítida divisão dos ministros do STF, encarregados de zelar pelo fiel cumprimento da Carta Magna, cujas decisões invariavelmente tem apontado para caminhos paralelos.

Há na atual composição do STF, marcada por votos contraditórios que se revezam em votos dos mesmos juristas que ora votam numa direção e, dependendo do jurisdicionado, invertem suas interpretações. Hoje as decisões constitucionais ou não estão ao sabor de uma distribuição para as Turmas que com suas diferentes composições podem ler uma Constituição ou negar vigência a seus artigos. Tais intervenções castrenses que tendem a suprimir as liberdades fundamentais, diminuem o espaço reservado ao dissenso e causam danos irreversíveis ao exercício pleno da cidadania.