Uma visita à Rocinha.

Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça e Membro da Associação Juízes para a Democracia.

 

Recebi um convite da Associação de Moradores da Rocinha para debater sobre o “Extermínio de Lideranças Femininas” com a Professora da Universidade do Canadá Susan Boyd e as lideranças femininas da Rocinha. A chegada numa sexta-feira à tarde foi deslumbrante. Subindo de carro pela Rua Ápia já causa um impacto impressionante de como a localidade pulsa. São 200 mil habitantes subindo e descendo o morro o que obriga o carro a seguir atrás das pessoas que andam no meio da rua a pé, de moto, de bicicleta, e as pessoas ditam a velocidade do carro como vi algumas vezes em algumas cidades da Índia. O que parece caótico, funciona maravilhosamente. Pessoas transitam em meio a um mercado surpreendente com quatro agências dos principais bancos do país, supermercados, lojas de eletrodomésticos, escolas públicas e privadas. E no meio do povo soldados fortemente armados fazendo seu trabalho de policiamento.

Ao chegar no topo da rua, desço do carro e tenho que retornar três Travessas, porque o carro não entra nelas, até encontrar a Travessa Palmas, onde fica a sede da Associação dos Moradores. Esta fica num prédio onde só sobe as escadas quem está em bom estado físico, e mesmo assim o local parece um formigueiro de pessoas que entram e saem à procura da solução dos mais variados problemas, desde a busca de documentos, até os conflitos de vizinhos e ajuda para emprego e vagas nas escolas, passando pela busca de melhoria de habitação. Pensei que bom, o poder público está atuando aqui. Engano meu. Tudo é resolvido, ou tenta-se resolver através da solidariedade dos moradores. Para a solução dos conflitos, zero da presença do judiciário, mas conheci duas moradoras treinadas e formadas em mediação de conflitos pela Defensoria Pública e pelo Tribunal de Justiça. Elas atuam, substituindo o poder judiciário, na solução dos conflitos e são respeitadas como eram os Pagés.

Problemas não faltam nessa comunidade constrangida pelo poder do crime de um lado e pala violência policial do outro. Ouvi das moradoras presentes alguns problemas que anotei e transcrevi num post do Facebook. Impressionaram-me alguns. Das 15 creches conveniadas com a Prefeitura, todas estão em vias de não conseguirem renovar o convênio por um entrave kafkiano: o comando do Corpo de Bombeiros da Gávea se recusa a fazer as necessárias vistorias, alegando falta de segurança. Ora nas creches ficam crianças, se não há segurança para os bombeiros, como pode haver para as crianças? André Fernandes é um jornalista que criou a Agência Nacional das Favelas para dar voz, visibilidade e encorajar o povo das favelas. Inspirei-me nela para dar publicidade a essas reclamações no Facebook.

A repercussão por parte de alguns foi bem característico da crítica filosofia do ódio que tem sido a marca de nossa atual sociedade. O apartheid social fica muito palpável quando a reação é de desqualificar os moradores e eventuais porta-vozes. Transcrevo o post: “Acabo de visitar a Rocinha, onde fui fazer uma palestra sobre violência contra as lideranças femininas e doméstica. Conversei com alguns sofridos moradores, são 200 mil homens e mulheres pacatos trabalhadores que estão sofrendo com as intervenções policiais, sobretudo do Bope, que segundo eles entram atirando nas vielas e invadem moradias, reviram tudo, causam danos e até furtam dinheiro e objetos. As crianças quase sempre deixam de ir às escolas em razão dos tiroteios. O tráfico que fica na parte de cima do morro não incomoda a vida normal dos moradores mais também trocam tiros quando são acossados pelos policiais do BOPE. Afirmam que os outros policiais fazem o policiamento normal com respeito aos moradores e são benvindos, mas insistem na falta de respeito doa policiais do BOPE, treinados para matar conforme seu símbolo, uma caveira. Foi justamente com esses policiais sanguinários que um grupo de juízes foram treinar tiros recentemente. Qual seria o objetivo, já que basta para um juiz os códigos e caneta? Queixaram-se que as creches comunitárias estão em vias de fechar porque o Corpo de Bombeiros da Gávea se recusa a fazer a necessária vistoria alegando ser lugar perigoso. Ora se é perigoso para os bombeiros, porque não o é para as crianças? Senhor General Interventor, já foi na Rocinha ouvir os moradores? Convido-o para ir. Faço companhia se desejar”.

Vejam como a Casa Grande reagiu açoitando os moradores do gueto aos quais são negados dignidade humana nas poucas moradias, na falta de políticas públicas como saneamento básico, educação de qualidade, áreas de lazer, esporte e divertimento, mas sobram violência e desrespeito. Alguns disseram: “Saiba que V. Exa. presta, fazendo essas acusações levianas apenas para angariar votos desse povo desprovido de tudo. Isso é uma vergonha”. Outro comentário; “ Verdade, sempre jogando contra o Rio”. Mais outro: “Lamento que meu amigo Siro continue com esta posição!!!” Mais uma pérola: “Muito pior do que pegar em armas é essa defesa partidária sem nenhum tipo de preocupação ética”. Mais uma: “É triste ler, que um formador de opinião coloca “o tráfico que fica na parte alta do morro NÃO incomoda a vida normal dos moradores, isso é um absurdo…”. E, finalmente: “ Vamos entregar ao tráfico então, deixa para Lá”.

São comentários que procuram desqualificar a voz dos moradores. Não eram minhas as palavras, mas os reclamos dos moradores, que além disso mostraram fotos e vídeos comprovando a violência de seu dia a dia. Não resta dúvida que algo precisa ser feito com essa evidente política de apartheid, de exclusão social. Os “homens de bem” não desejam mais que usar a força física de suas domésticas, porteiros, motoristas, lavadeiras e passadeiras aos quais exploram tanto ou mais que no período da escravidão. Aos moradores do gueto compete o silencio e a satisfação de estarem vivos, apesar de toda política de extermínio e exclusão pelo aprisionamento no sistema penitenciário.

“Calem-se” dizem os comentaristas. Contentem-se por viver onde vivem e nas condições em que vivem. Se reclamarem irão para o tronco das prisões coletivas através de mandados de busca coletivos. Embora a lei lhes assegure a prisão domiciliar para as mães, só se aplicam às que não forem do gueto, às do gueto devem permanecer longe dos filhos sem cuidar deles. Se continuarem reclamando terão o destino da Marielle Franco e Anderson Gomes. Cuidado, se frequentarem as praias da zona sul, reduto exclusivo dos “moradores de bem” serão impedidos pelas barreiras policiais e se ultrapassarem serão presos por praticarem “arrastões’.

Por fim, tomo emprestado as palavras de Nilo Batista para garantir a voz dos excluídos e oprimidos: “A ideia de que a favela tem o direito de narrar-se, de noticiar-se, de realizar sua própria crônica a partir de sua visão de mundo merece, nesses tempos em que a ditadura do capital comunicativo começa a ser hostilizada por mídias alternativas, ser chamada de revolucionária. Neste sentido, a biografia de André Fernandes se cruza com a história do povo favelado carioca, abrindo novos caminhos e possibilidades tanto na comunicação como no enfrentamento social das mazelas”.