Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a Democracia.

 

Na semana em que comemoramos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos recebi um presente do Instituto Anjos da Liberdade, que é uma organização de direitos humanos, formado por profissionais de diversas áreas do direito, da saúde, de serviços sociais que se dedica a efetivação dos direitos básicos do ser humano para a promoção de uma vida digna.

O presente que ganhei foi o convite para participar de uma das inúmeras atividades do Instituto. Naquele dia os anjos e anjas se destinaram ao Gueto da Cracolândia da favela do Jacaré com aproximadamente 2 mil pessoas, homens, mulheres e crianças que vivem na beira dos trilhos do trem da Central do Brasil, ao redor de um lixão, onde garimpam objetos para ajudar na sobrevivência do grupo. A proposta era levar alimentos, bebidas (refrigerantes e água), roupas e afeto aos moradores do gueto.

Antes, porém, o ponto de encontro foi numa casa incrível, com mais de 120 pessoas, homens, mulheres e crianças que ocupam um espaço de propriedade da Previdência Pública, onde foram construídos ao redor de um templo casebres miseráveis, mas com dignidade para esse povo excluído. Quem comanda essa grande família são dois pastores evangélicos Celso, que estava trabalhando na rua e Michele uma mulher com aparência frágil, mas de uma fortaleza incrível.

Esses dois seres humanos maravilhosos, ao contrário de outros líderes religiosos nada pedem em troca, ao contrário, doam-se integralmente para dar sustento àqueles que eles tiveram a coragem e humanidade de retirar das cracolândias oferecendo-lhes um lar para compartilhar o pão, o trabalho e o afeto. Um trabalho desconhecido para os cegos por conveniência, mas que precisa ser mostrado em toda sua essência de afeto como a prática real da palavra pregada e vivida.

Nessa comunidade de retirados do lixo para a dignidade de uma convivência inclusiva tudo é pobre e carente, mas dividido por todos como nas primeiras comunidades cristãs. Eu testemunhei essa troca em ambiente de respeitosa convivência que deve ser exemplo para tantos que apostam na exclusão como medida de correção e punição.

Partimos para o gueto dos usuários de crack como se estivéssemos partindo para um piquenique. Chegando na entrada fomos interpelados por um grupo que desejava saber onde iríamos. Dra. Flavia Fróes informou que íamos dar atendimento aos irmãos e logo fomos liberados, uma carreta de 5 caros. Fomos, no entanto, aviusados que não poderíamos ir até a comunidade porque haviam colocado um grande trilho de trem na entrada para evitar o acesso de carros.

Estacionamos na entrada onde existe um CIEP, obra monumental do único governante brasileiro que valorizava a educação e o respeito, Leonel Brizola, e entramos a pé até o conglomerado de barracos onde vivem os moradores. O ambiente era de uma cidade pobre do interior com música alta, máquina de jogos, e, naturalmente a “boca” muito sofisticada com balcão e pessoas enrolando com papel celofane as pedras “preciosas”. O estado de espirito dos moradores era desolador pela sujeira, miséria e estado de “noação” de muitos deles.

Havia nisso tudo muita criatividade. No local passa um duto da Cedae que logo foi transformado numa “cachoeira” onde tomam banho. Construíram um local privativo comum para as necessidades fisiológicas. E lá estávamos nós convidando-os para irem até a entrada onde estavam estacionados os carros para comerem, beberem e vestirem. Os Anjos e Anjas haviam trazido dois tipos de macarronadas com salsicha e com carne moída, refrigerantes gelados servidos em copos e pratos plásticos, um bolo gigante com sacos de bombons Sonho de Valsa, além de roupas e sapatos.

Tudo transcorria muito bem quando ofereci uma sapatilha para uma menina, aparentemente drogada, magra e com olhar distante. Ao experimentar as sapatilhas vi que haviam calçado como uma luva e assim me expressei: “Porra, deu certinho! ”. Imediatamente ela reagiu com olhar de repreensão determinando: Pede perdão! Pede perdão! Amedrontado respondi: Perdão. Ela repetiu: Pede perdão a Deus porque você falou porra e isso é palavrão. Envergonhado, repeti: perdão.

Ela então continuou. Nesse final de ano você está sendo perseguido pelos inimigos e eles são poderosos, mas você já venceu. Sabe por que? Porque você está aqui nesse lugar. As meninas que assistiam a essa cena imediatamente disseram: Siro essa mensagem é para você. Voltei-me para a menina e agradeci. Ela redarguiu: Não tem nada que agradecer essa mensagem não é minha. É uma mensagem de Deus.

Outro menino, com uma caixa de engraxate na mão aproximou-se e disse que iria fazer uma oração para mim. Começou a cantar hinos religiosos e a final pediu que tirássemos uma fotografia juntos. Enfim, voltamos para o abrigo dos que optam por mais dignidade e saem do gueto e voltei para casa com muita emoção. Foi uma noite magnífica de revelações e encontros nunca antes imagináveis. Obrigado Anjos da Liberdade.