Os filhos do Brasil.

Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça e membro da Associação Juízes para a democracia.

 

Há 29 anos o Congresso Nacional aprovou e entrava em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente. A Lei 8069/90 entrou em vigor no dia da criança, 12 de outubro, também o dia da Padroeira do Brasil Nossa senhora Aparecida. O Brasil entrava então no rol dos países civilizados que se adaptava à Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança, definida como todo ser humano até os 18 anos. A expectativa era grande porque uma Nação que respeita suas crianças investe no futuro.

O Brasil foi descoberto (ou invadido) sob o signo da violência contra as crianças. Juntamente com os navegadores vieram crianças pobre e abandonadas de Lisboa, algumas retiradas dos asilos para servirem aos marujos. Eram chamados grumetes, e segundo os historiadores serviam literalmente aos navegantes não apenas executando os trabalhos de limpeza, mas muitas vezes eram abusadas a bordo. Portanto, as primeiras crianças que aqui aportaram, ao contrário das indígenas, já sofriam abusos e violências de todo tipo.

Nossa cultura sofreu essa influência e quanto mais alta fosse a classe social, maior a distância dos pais com as crianças, sempre intermediado pelas amas de leite, aias, babás e criadas. Não apenas na América, mas Rousseau, um dos mais importantes filósofos do iluminismo, com toda sua cultura, não hesitou em abandonar os filhos na roda dos enjeitados. Mesmo a Igreja colonizadora, com toda sua mensagem cristã de amor ao próximo e tendo como modelo a Sagrada Família, tratava as crianças com discriminação.

A história da Roda dos Enjeitados durante muitos séculos foi o máximo de caridade cristã que conhecemos. Mesmo a educação trazida pelos jesuítas foi excludente, pois, à parte a catequização dos locais, o Colégio era destinado aos filhos da elite, como ocorre até hoje, apesar da instituição do ensino público e gratuito.

Estamos, pois, perdendo uma grande oportunidade de realizarmos uma revolução incruenta com a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes brasileiras. Imaginem que passados 29 anos da edição dessa lei inovadora e de respeito aos direitos humanos, todas as crianças tivessem acesso garantido, com absoluta prioridade aos direitos à vida. Quantas crianças tiveram a vida ceifada nesses anos. O Brasil contabiliza mais de 80 mil mortes, a maioria envolvendo crianças e jovens. Que todas as crianças tivessem uma família bem constituída, biológica ou não, sem qualquer tipo de discriminação, que as respeitasse e não praticassem violência. Quase todos os casos de violência envolvendo crianças, elas são vítimas.

Lembrando Lenon, imaginem que todas as crianças estivessem estudando em horário integral em escolas de qualidade, com professores dedicados e bem remunerados para ensinar e amar os alunos. Imaginem que todas as crianças pudessem brincar ao invés de serem exploradas no trabalho infantil, incluindo o trabalho na prostituição e no tráfico de drogas, as duas piores formas de exploração do trabalho infantil.

Imaginem que todas as crianças tivessem respeitados, com reza o artigo 227 da Constituição da República os direitos à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, além não serem negligenciadas, discriminadas, exploradas, vítimas de violência, crueldade e opressão. Passados 29 anos respeitando nossas crianças e seríamos uma outra Nação. Resta-nos apenas a esperança de que algum dia, e que seja breve, essa revolução incruenta ocorra e que respeitando os filhos que geramos e que se encontram em processo de desenvolvimento possam ser alimentados pelo respeito e pelo amor e construam uma nação sob essas bases.