Construindo uma doutrina de proteção integral 2.

Depois de dois anos de uma feliz estada na Comarca de Silva Jardim, onde presidi as eleições de 1982, conhecida como a “farsa da Proconsult”, e onde vivi uma experiência eleitoral muito marcante com a Caravana da legalidade do então candidato Leonel Brizola, que percorria em campanha eleitoral o interior do Estado.
Em Silva Jardim havia acordado com todos os candidatos que não haveria campanha eleitoral antes do prazo legalmente estabelecido. E todos estavam cumprindo. Até que um grupo de candidatos chega a meu gabinete para anunciar que uma caravana de “comunistas” pretendiam entrar na cidade com carros, caminhões de som e bandeiras vermelhas em nítida campanha eleitoral.
Coerentemente, embora com meu coração brizolista em crise, chamei meu estado maior de segurança da cidade composto por uma viatura e dois soldados e o delegado da cidade e determinei que se postassem na entrada da cidade na Br 101, na localidade conhecida como Boqueirão e impedisse a entrada da Caravana que vinha do norte do Estado. Meu batalhão posicionou-se para impedir a entrada dos intrusos e fizeram cumprir minha ordem
Logo recebi em meu gabinete personagens ilustres como Vivaldo Barbosa e outros proeminentes pedetistas para uma negociação. Expliquei que a cidade estava cumprindo a Resolução do TSE e todos os candidatos estavam aguardando a data para dar início à campanha eleitoral e não poderia abrir exceção. Os ilustres políticos argumentaram que desejavam apenas atravessar a cidade. Respondi que podiam atravessar mais sem som e sem bandeiras e cartazes que caracterizassem campanha eleitoral, o que não foi do interesse da caravana, que seguiu sua caminhada.
Depois de dois anos em exercício na Comarca de Silva Jardim, acumulando às vezes com Casimiro de Abreu, Araruama, Macaé, e a longínqua Conceição da Macabu, fui transferido para a Capital, onde tive uma agradável experiência na Vara de Execução Penal, auxiliando o brilhante juiz titular Dr. Francisco Motta Macedo. Colega fiel, amigo, competente e de uma simplicidade exemplar. Conheci pessoas maravilhosas e um amor muito especial, que deixou marcas profundas.
Conviver com presos e familiares é sempre uma lição necessária a todos os magistrados. Onde muitos pensam que só há o mal, brotam flores preciosas e perfumadas, que apenas foram mordidas por um morcego e cederam á fraqueza natural em todo ser humano, mormente àqueles a quem se nega respeito e dignidade.
Logo surgem as incompreensões dos que não reconhecem esses valores no lodo da humanidade e não tardou a chegar à próxima representação. Surgiu de um nobre advogado, na época muito famoso criador de casos que anda desaparecido, talvez por ter esgotado seu arsenal.
A representação consistiu na prática de descumprimento de decisão do tribunal baseado na proibição de conceder benefício para presos proferida em reclamação contra o ilustre titular Dr. Motta Macedo. Por ocasião das festas natalinas eu proferira decisão genérica concedendo os benefícios para passar natal e ano novo com as famílias os presos que preenchessem determinados requisitos legais. Embora a decisão tivesse sido de minha lavra, o Conselho da Magistratura puniu o inocente juiz titular com pena de advertência e julgou improcedente a representação contra mim que havia proferido a decisão atacada. Durma-se com um barulho desses.
A Representação nº 1989.002.00478 foi arquivada liminarmente porque o representante se queixava de uma matéria publicada em O Dia, onde havia uma denúncia confirmada com a minha inspeção pessoal de haver mordomias privilegiadas a um preso no Desipe de Niterói. Confirmada a denúncia o próprio relator determinou seu arquivamento.
O grande produtor cultural e não apenas carnavalesco Joãozinho Trinta, demonstrando grande sensibilidade social obtivera licença do Governo Federal para acolher no Galpão onde hoje funciona a sede do Programa Fome Zero do Betinho, para acolher a população de rua, logo depois da Chacina da Candelária. Imediatamente apoiei a inciativa e me dispus a colocar no local um Posto Avançado de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, já que essa era a minha competência.
Incomodado o juiz da Vara dos carentes representou afirmando ter havido uma invasão de competência uma vez que o Estatuto da ONG Espaço Flor do Amanhã era específico para adolescentes carentes. Ora a diferença entre os jovens que viviam nas ruas era muito tênue pra se definir quem era carente ou infrator. Na verdade todos erram carentes de políticas públicas e respeito, mas a doutrina ainda aplicada era a da situação irregular, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente já estivesse em vigor.
Ademais era costume do Juiz da Segunda Vara dos Infratores a instalação de Postos Avançados como o existente na Escola Tia Ciata, onde eram fornecidos documentos e encaminhamentos para empregos e matrículas em escolas, o Posto Avançado Porta Aberta, instalado no Primeiro Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca, onde os infratores eram recebidos e tinham a oportunidade de exercer ofícios profissionalizantes e documentos num local simbólico por haver sido a sede de torturas e purificava o local construindo oportunidades para a cidadania.
Essa representação também foi arquivada pelo ilustre relator Des. Darcy Lizardo, entendendo que com a desativação do Projeto Flor do Amanhã, não persistia a motivação da representação, sábia decisão.