A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

Siro Darlan – Membro da Associação Juízes para a democracia e do Instituto dos Advogados do Brasil

A CUFA ocupou um imóvel que estava abandonado e que antes estava sendo usado pelo tráfico de entorpecente na Favela do Sapo. Fiel a sua finalidade de construir espaços de exercício da cidadania aos moradores das favelas realizou diversas obras de melhoria, fez reparos na parte elétrica e hidráulica, reformou paredes e portas e construiu oficinas de trabalho para a população local.

Foram construídas oficinas de percussão, cavaquinho, teatro, violão, basquete, hip hop para atender os jovens e crianças da comunidade. Foi a forma encontrada pela CUFA de dar a função social que integra o conceito de propriedade que estava abandonada desde que houve a falência de um supermercado que ali funcionava, fechado há 20 anos.

Feitas as melhorias o poder econômico e especulador que utiliza a propriedade apenas e tão somente para fins econômicos lembrou-se do imóvel e o retomou por decisão judicial.

Embora seja norma consagrada na Constituição como direito fundamental, o problema da função social da propriedade virou moda, mas a moda ainda não pegou, em face dos inúmeros interesses que ela contraria. No dito popular a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco; “o pior acontece, como sempre, àqueles que não têm escolha.Assim a função social, quando vai de encontro ao interesses das classes mais abastadas, que fatalmente é regra, não sai do papel.
Nesse sentido leciona Laércio Becker apontando que: “como é público e notório, a função social da propriedade urbana, porque prevista na Constituição, recebeu inúmeros ensaios e elogios da doutrina. Entretanto, não passam de retórica.” Parece-nos ter dito isto tendo em vista a tendência positivista em que, havendo um direito individual expressamente previsto, pugna o aplicador do direito pela sua prevalência, sem conspurcar as possibilidades oriundas da ponderação de interesses.
Nada obstante nosso Judiciário não tem sido assim tão receptivo à idéia da função social, sobretudo quando essa vai de encontro a interesses de proprietários influentes. Nesse caso, assevera o professor Albuquerque Rocha, o Judiciário acaba por ser verdadeira “instância de aniquilamento das conquistas alcançadas pelo povo no campo do Poder Legislativo, vale dizer, no nível das normas gerais e abstratas, por sua não aplicação ou por sua interpretação restritiva.” A jurisprudência, mediante interpretação restritiva, torna letra morta as proposições elaboradas pelo legislativo.
No entanto também há decisões que estão introduzindo na jurisprudência o respeito à função social da propriedade como elemento que a constitui efetivamente, embora ressalvando o direito do proprietário á indenização, como na ementa a seguir enunciada:
“Ação reivindicatória. Lotes de terreno transformados em favela dotada de equipamentos urbanos. Função social da propriedade. Direito de indenização dos proprietários. Lotes de terreno urbanos tragados por uma favela deixam de existir e não podem ser recuperados, fazendo, assim, desaparecer o direito de reivindicá-los. O abandono dos lotes urbanos caracteriza uso anti-social da propriedade, afastado que se apresenta do princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece, todavia, o direito dos proprietários de pleitear indenização contra quem de direito.” TJ/SP, Ap. Cível n° 212.726-1-8, São Paulo, 8ª Câm. Cív. unân., j. 16.12.1994, Rel. Des. José Osório, Boletim AASP n° 1896, p. 137-140.
Justo na Favela do Sapo onde já imperaram o Rogério Lengruber, vulgo “Bagulhão” e onde os agentes da justiça antes não entravam, e graças à ação cidadã da CUFA, o oficial de justiça pode entrar para anunciar que o espaço destinado a construção da Cidadania estava sendo reintegrado àqueles que há anos abandonaram o espaço para a criminalidade. Grande ironia a cidadania foi despejada para dar lugar aos responsáveis pelo mau uso da propriedade.
Parece-nos que, no momento em que o Judiciário se contrapõe ao ordenamento jurídico, se omitindo da análise ponderada do confronto dos Direitos Individuais e Sociais, acaba subvertendo uma ordem jurídica reclamada pela população. No caso concreto tal prática nada mais é do que dar importância aos dogmas napoleônicos da propriedade.

Está consagrado nas Constituições mais modernas, com destaque para a nossa Carta Cidadão de 1988 que a propriedade é direito fundamental e como tal deve atender ao princípio da dignidade da pessoa humana. A propriedade, sendo um direito do cidadão, deve existir, tendo como fundamento maior, a necessidade de se atender às necessidades da pessoa humana e da coletividade. Essas necessidades vão desde a posse da terra, no campo, para a moradia e a habitação, como também nas cidades, representam o direito à propriedade, para que a família possa obter moradia e convivência digna com a comunidade.
A dignidade da pessoa humana pode, assim, ser visualizada, na medida em que o cidadão e sua família, tendo a propriedade da terra, possam nela se estabelecer. No plano do bem estar social, a propriedade proporciona, ao homem das cidades, a plena harmonia com sua família e com a sociedade, possibilitando o equilíbrio humano, emocional e cultural, premissas básicas de um Estado Social de Direito, cuja pedra de toque é a socialização do direito. Nesse sentido, a propriedade e sua conseqüente função social, no plano urbanístico, inserem o homem nas relações interpessoais, dando-lhe afeições e prazer em seu status dignitatis,porquanto um homem, sem propriedade, sem moradia e habitação, é um homem desprovido de sua dignidade.
O que torna legítimo o direito de propriedade é a sua correta utilização pelo proprietário e a extração das potencialidades geradoras de riquezas. Essa geração de riqueza útil ao proprietário e a coletividade, é condição essencial, para o cumprimento da função social. Melhor destinação social da propriedade estava dando a CUFA com a construção dos elementos produtores de cultura e cidadania para a comunidade local. Roga-se, portanto o respeito à Constituição que consagra o direito de propriedade condicionado ao exercício de sua função social.