• Na coluna Contra Correntes

    Por Rubens R R Casara

    No imaginário democrático, o Poder Judiciário ocupa posição de destaque. Diante dos conflitos intersubjetivos, de uma cultura narcísica e individualista que cria obstáculos ao diálogo, de sujeitos que se demitem de sua posição de sujeito (que se submetem sem resistência ao sistema que o comanda e não se autorizam a pensar e solucionar seus problemas[1]), da inércia do Executivo em assegurar o respeito aos direitos individuais, coletivos e difusos, o Poder Judiciário apresenta-se como o ente estatal capaz de atender às promessas descumpridas tanto pelo demais agentes estatais quanto por particulares e de exercer a função de guardião da democracia e dos direitos.[2] A esperança depositada, porém, cede rapidamente diante do indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça[3] em satisfazer os interesses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante a separação entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação do Poder Judiciário no ambiente democrático. Não raro, para dar respostas (ainda que meramente formais) às crescentes demandas, o Poder Judiciário recorre a uma concepção política pragmática que faz com que ora se utilize de expedientes técnicos para descontextualizar conflitos e sonegar direitos, ora recorra ao patrimônio[4] gestado nos períodos autoritários da história do Brasil para manutenção da ordem. Não obstante, na media em que cresce a atuação do Poder Judiciário (ainda que essa atuação não atenda às expectativas geradas), diminui a ação política, naquilo que se convencionou chamar de ativismo judicial[5]. Esse quadro está a indicar um aumento da influência dos juízes e tribunais nos rumos da vida brasileira, fenômeno correlato à crise de legitimidade de todas as agências estatais e ao crescimento do sentimento de desconfiança em relação à Justiça. Em outras palavras: hoje, percebe-se claramente que o Sistema de Justiça tornou-se um locus privilegiado da luta política, o que torna a escolha dos Ministros dos tribunais superiores (ou seja, dos tribunais com competência em todo território nacional e que produzem as decisões que servem de diretrizes/modelos para todos os órgãos do Poder Judiciário) um ponto sensível (embora, constantemente negligenciado) no processo de construção da democracia brasileira (democracia aqui entendida em seu sentido material, como efetiva participação popular na produção das decisões fundamentais à República somada ao respeito incondicional aos direitos fundamentais).Por evidente, não se pode pensar a atuação do Poder Judiciário desassociada da tradição em que os magistrados[6] estão inseridos. Adere-se, portanto, à hipótese de que há uma relação histórica, teórica e ideológica entre o processo de formação da sociedade brasileira (e do próprio Poder Judiciário) e as práticas observadas na Justiça brasileira[7]. Em apertada síntese, pode-se apontar que em razão de uma tradição autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico e os cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que os rebentos da classe dominante (aristocracia) pudessem se impor perante a sociedade[8], sem que existisse qualquer forma de controle democrático dessa casta, gerou-se um Poder Judiciário marcado por uma ideologia patriarcal e patrimonialista (poder-se-ia dizer até aristocrática), constituída de um conjunto de valores que se caracteriza por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do outro (não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às formas e ao conservadorismo.[9] De igual sorte, não se pode desconsiderar que o Poder Judiciário tornou-se uma máquina de burocratizar.[10] Esse processo, que se inicia na seleção e treinamento dos magistrados, pode ser explicado: em parte, porque assim os juízes dispensam a tarefa de pensar (há nesses juízes um pouco de Eichmann) e, ao mesmo tempo, ao não contrariar o sistema (ainda que arcaico), evitam a colisão com a opinião daqueles que podem definir sua ascensão e promoção na carreira (“comodismo crônico”);[11] em parte, porque há uma normalização produzida pelo senso comum e internalizada pelo juiz (“neurose conservadora”),[12] através da qual esse ator jurídico passa a acreditar no papel de autoridade diferenciada, capaz de julgar despido de ideologias e valores. Assume, enfim, a postura que o processo de produção de subjetividades lhe outorgou, o que acaba por condicioná-lo a adotar posturas conservadoras no exercício de suas funções com o intuito de preservar a tradição. Para além dessa tendência à conservação da tradição que acompanha o Poder Judiciário desde sua origem, há também o caráter ideológico do direito burguês, a serviço do velamento da facticidade, em especial das contradições existentes na sociedade. Conforme a crítica marxista ajuda a compreender[13], os textos legais, com suas abstrações generalizantes, são capazes de produzir uma alienação mundana que favorece a manutenção do status quo. Assim, se o texto legal, potencialmente conservador, é um evento que não pode ser ignorado pelo juiz, intérprete privilegiado que irá criar a norma para o caso concreto[14], reforça-se, ainda mais, o caráter conservador da atuação do Poder Judiciário. A burocratização, marcada por decisões conservadoras em um contexto de desigualdade e insatisfação, e o distanciamento da população fazem com que o Judiciário seja visto como uma agência seletiva a serviço daqueles capazes de deter poder e riqueza. Se por um lado, pessoas dotadas de sensibilidade democrática são incapazes de identificar no Poder Judiciário um instrumento de construção da democracia; por outro, pessoas que acreditam em posturas fascistas (na crença da força em detrimento do conhecimento, na negação da diferença, etc.) aplaudem juízes que atuam a partir de uma epistemologia autoritária. Não causa surpresa, portanto, que considerável parcela dos meios de comunicação de massa, a mesma que propaga discursos de ódio e ressentimento, procure construir a representação do “bom juiz” a partir dos seus preconceitos e de sua visão descomprometida com a democracia. Não se pode esquecer que “o sistema midiático tem a capacidade de fixar sentidos e ideologias, o que interfere na formação da opinião pública e na construção do imaginário social” (Dênis de Moraes). Assim, o “bom juiz”, construído/vendido por essas empresas de comunicação e percebido por parcela da população como herói, passa a ser aquele que considera os direitos fundamentais como óbices à eficiência do Estado (ou do mercado). Para muitos, alguns por ignorância das regras do jogo democrático, outros por compromisso com posturas autoritárias, o “bom juiz” é justamente aquele que, ao afastar direitos fundamentais, nega a concepção material de democracia. Note-se que o distanciamento em relação à população gerou em setores do Poder Judiciário, mesmo entre aqueles que acreditam na democracia, uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública (ou, ao menos, aos anseios externados através dos meios de comunicação de massa). Tem-se o populista judicial, isto é, o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões judiciais, como forma de democratizar a Justiça aos olhos da população, mesmo que para tanto seja necessário afastar direitos e garantias previstos no ordenamento.[15] Assim, não raro, juízes de todo o Brasil passaram a priorizar a hipótese que interessa à mídia ou ao espetáculo em detrimento dos fatos que podem ser reconstruídos através do processo (nesse particular, a Ação Penal 470 é um exemplo paradigmático). Na democracia, porém, os direitos fundamentais de todos (culpados ou inocentes, desejáveis ou odiáveis) devem ser respeitados. A atuação dos magistrados não pode ser pautada pelo desejo das maiorias, sob pena de inviabilizar o direito das minorias. O Poder Judiciário atua como garante contra a opressão, inclusive contra abusos promovidos pela maioria, e é, portanto, contramajoritário.  Mais do que isso: para assegurar o direito de um, o Poder Judiciário pode (e deve) julgar em sentido contrário à vontade de todos os demais[16]. Dito de outra forma: os direitos fundamentais funcionam como trunfos contra as maiorias de ocasião e cabe ao Poder Judiciário assegurar não só esses direitos como também a própria democracia em sentido substancial. [17] Em suma, a tradição em que os atores jurídicos estão inseridos, as práticas autoritárias e conservadoras, e a burocratização são fatores que fazem com que o Poder Judiciário não conte com a confiança da sociedade brasileira. Percebido como uma agência estatal seletiva, voltada somente aos interesses da elite, incapaz de concretizar os direitos da grande maioria da população, o Judiciário passa por séria crise de legitimidade. Crise agravada pelo fato de que as tentativas de satisfazer a opinião pública, com a adoção de medidas judiciais que contam com o apoio dos meios de comunicação de massa, tem resultado em violações aos direitos fundamentais, que deixam de funcionar como limites à opressão do Estado e das maiorias, colocando em risco a própria democracia. Diante desse quadro, para evitar frustrações, é importante reconhecer que o Poder Judiciário é incapaz de substituir a luta política. Os membros desse poder, na condição de agentes políticos, devem aderir e incentivar essa luta. Para tanto, precisam se interpretar, compreender o contexto em que atuam, seus preconceitos e suas limitações, como forma de romper com a tradição em que estão inseridos e reconquistar a  legitimidade perdida (quiçá construir uma legitimidade que nunca existiu). Impõe-se, pois, trabalhar pelo resgate da política como meio de satisfação das potencialidades humanas e, ao mesmo tempo, atuar sempre voltados à concretização do projeto constitucional. Isso, por sua vez, significa assumir a função do Poder Judiciário no jogo democrático, de assegurar o respeito aos direitos fundamentais e acomodar os conflitos, e zelar pela divisão das responsabilidades nesse processo de construção da democracia brasileira.

    Rubens R R Casara é doutor em direito, mestre em ciências penais, professor universitário, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano. Escreve a coluna Contracorrentes com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.